Provavelmente
nenhum bairro de Feira de Santana nasceu como o conjunto George Américo:
cercado de polêmicas, disputas judiciais e alvo da atenção até da imprensa
nacional. O começo de tudo tem data precisa: madrugada de 28 de novembro de
1987, quando cerca de cinco mil pessoas – a estimativa é da imprensa, à época –
ocuparam o antigo aeroporto da cidade que os mais antigos denominavam “campo de
aviação”, contíguo ao bairro Campo Limpo. À frente do grupo estava o intrépido
líder dos sem-teto, George Américo Mascarenhas, então com 26 anos, conhecido
como “rei das invasões”.
O Jornal do
Brasil - diário carioca que foi o principal jornal impresso do País durante
muito tempo – registrou, na edição de 5 de dezembro daquele ano, que o terreno
“foi ocupado numa ação programada pelos sem-teto, em que não faltaram o hasteamento
da Bandeira do Brasil e o canto do Hino Nacional”.
A publicação
também registrou o cenário inicial daquilo que lembrava muito um acampamento ou
um campo de refugiados: “Muitas famílias já estão morando em toscos barracos
improvisados, feitos à base de lona, plásticos e restos de materiais de
construção. Outros invasores apenas demarcaram os lotes”.
Quem não
gostou daquela ocupação – a 21ª liderada por George Américo, conforme
contabilidade dele próprio – foi o então prefeito José Falcão da Silva, do PDS,
que ameaçou: “É melhor que eles saiam através da Justiça que pela força da
polícia”.
A primeira
providência do então prefeito foi requisitar a reintegração de posse à Justiça.
A segunda foi anunciar um recadastramento das famílias, que seriam contempladas
no ano seguinte com moradias baratas em um plano de habitação popular, o
Planolar. Ironicamente, muitos ocupantes tinham cadastro anterior na
iniciativa, mas nunca foram atendidos.
Protesto
Dias depois da ocupação, um protesto defronte à prefeitura reuniu mil manifestantes, sob a batuta de George Américo, que anunciava resistência: os sem-teto só sairiam do terreno “se for diretamente para o cemitério”. A manifestação paralisou o centro da cidade. Àquela altura, a Justiça já havia concedido a reintegração de posse à prefeitura. Foi o que noticiou o JB em 15 de dezembro de 1987.
Veio, então,
o fato inusitado: a Polícia Militar não cumpriu a determinação judicial de
reintegração, o que deixou o então prefeito José Falcão indignado, queixando-se
da insubordinação do comandante local da PM: “Nunca vi uma coisa dessas”, disse
e o Jornal do Brasil de 18 de dezembro registrou.
Waldir
Pires, governador da Bahia à época, alegou para o presidente do Tribunal de
Justiça que a desocupação implicava em “problemas sociais graves, porque a
ocupação é muito grande”. Até aquele momento, parecia que a reintegração era
questão de tempo: bastava à Polícia Militar definir a melhor estratégia para
remover os ocupantes.
A tensão
crescia com a expectativa da desocupação forçada do antigo campo de aviação.
Dias depois, antecipando-se a possíveis distúrbios, o governador Waldir Pires
determinou a desapropriação da área e a incluiu no programa Minha Casa. A
medida representou uma vitória dos sem-teto, no geral, e de seu líder
inequívoco – George Américo – no particular.
Prisão e morte
Aquele tenso
dezembro de 1987, no entanto, ainda reservaria algumas surpresas. Uma ordem de
prisão foi expedida contra George Américo e ele acabou preso, conforme matéria
do Jornal do Brasil do dia 24, véspera de Natal: “Foi preso ontem e levado para
o Departamento de Polícia do Interior (Depin), em Salvador, ‘para evitar
comoção social, ajuntamento os protestos’ dos favelados”.
A prisão
aconteceu na casa da sogra dele, no bairro Jardim Cruzeiro, quando estava em
companhia da mulher e das duas filhas. A ordem de prisão foi expedida sete dias
antes e a juíza responsável pelo caso chegou a acusar a polícia de fazer “corpo
mole” para prender a respeitada liderança.
Na mesma
matéria, há uma declaração premonitória de George Américo, logo depois da sua prisão:
“Só paro quando me matarem ou quando não existirem mais famílias sem teto”.
Seguiu com um discurso candente: “Ninguém ajuda o povo carente, que precisa de
uma pessoa esclarecida para defender seu direito de morar. O povo produz tudo e
não tem nada. Os poderes públicos só fazem alguma coisa quando acontecem as
ocupações. Aí sim, a solução aparece”.
George
Américo era dado como vereador eleito no pleito que se aproximava, de 1988.
Alguns já previam uma votação consagradora, pois se tornara liderança
indiscutível. A morte – nunca esclarecida pela polícia – interrompeu a trajetória
de maneira trágica. Seu cadáver foi encontrado no dia 5 de maio de 1988, às
margens do rio Jacuípe, com dois tiros de escopeta.
Uma multidão
acompanhou o sepultamento no Cemitério São Jorge. A precária invasão inicial se
converteu em conjunto, que ganhou o nome do seu principal líder. Hoje, é uma
das principais comunidades da maltratada periferia feirense.
Mesmo morto tão precocemente, George Américo
tornou-se uma das principais lideranças comunitárias da História da Feira de
Santana.
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