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O inverossímil dá o tom do roteiro eleitoral

Faltam pouco mais de 60 dias para as eleições presidenciais. Até aqui, a sucessão segue um roteiro inverossímil, digno dessas republiquetas de bananas que saltaram do mundo subdesenvolvido para as telas dos cinemas. Aliás, esse ambiente político surreal desabrochou há, pelo menos, cinco anos: nas célebres jornadas de junho de 2013 os governantes preferiram ignorar aquela inquietação difusa que congestionou as ruas, optando por alardear a realidade rósea produzida nos estúdios de marqueteiros criativos. Houve, inclusive, quem acusasse os manifestantes de “ingratidão”.
No ano seguinte – naquelas tormentosas eleições presidenciais – sobraram agressões e faltaram ideias. Descolada da realidade, a marquetagem ignorou os prenúncios de crise. O resultado não podia ser outro: intensificação do arranca-rabo político com a deposição de Dilma Rousseff (PT), depois do flagrante estelionato eleitoral aplicado sobre seus crédulos eleitores. Ao largo, prosperava no Congresso o clientelismo – e outras práticas abomináveis – encarnadas pelas bancadas do boi, da bala e da bíblia.
Artífice da rasteira sobre o petismo, Michel Temer (MDB-SP) ascendeu. Se Dilma Rousseff conduziu um governo ruinoso, o mandatário de Tietê foi a própria personificação da ruína. Está aí a catástrofe econômica, a metástase da corrupção, a ultrajante revogação de direitos, o sucateamento dos serviços públicos, as benesses generosas para amigos empresários e a própria gestão temerária para explicar a maciça rejeição ao controverso governante.
Traumatizado com esses antecedentes, o brasileiro vê se aproximarem as eleições presidenciais sob o já mencionado cenário surreal. O líder das pesquisas – Lula – está encarcerado em Curitiba; Jair Bolsonaro – aquele entusiasta do regime militar – herda, até o momento, a liderança sem o ex-presidente petista. Daí para trás um magote de candidaturas pouco expressivas se acotovela, carente de ideias, de um plano, de um rumo para o País.
Nesse cenário de amplas incertezas, uma convicção, pelo menos, já se cristalizou: vença quem vencer, quem vai seguir dando as cartas no Congresso Nacional, mercadejando benesses, cargos e verbas e viabilizando eventualmente a próxima gestão é o chamado “Centrão”, aquele agrupamento partidário que reúne DEM, PP, PR, PRB e Solidariedade. Movimentando-se, em bloco, ampliam o próprio cacife.

Marchas e contramarchas

Depois de marchas e contramarchas, decidiram aderir a Geraldo Alckmin (PSDB-SP), o ex-governador de São Paulo. Ironicamente, em tese, é aquele menos exposto à tutela, já que representa uma legenda robusta e se apresenta com um leque prévio de apoiadores. Ciro Gomes (PDT-CE) e Jair Bolsonaro – vinculado ao insignificante PSL – seriam muito mais dependentes desse consórcio interpartidário, caso amealhassem o apoio.
No petismo, o cenário não é menos dramático. Lula – como candidato – estertora: tudo indica que sua candidatura será indeferida. Mesmo assim, insiste, sustentando-a, embora os clamores pela indicação de um “poste” venham se elevando. Num lance ousado, lançou um programa de governo radical, fustigando o oligopólio bancário e os conglomerados da comunicação.
É provável que tudo não passe de blefe: nem Lula vai até o fim em sua obstinação, nem existem intenções de adotar aquilo que foi lançado em frases chamejantes no papel. Talvez Lula já tenha feito sua escolha tempos atrás – o “poste” – e mantenha as especulações como cortina de fumaça; e o tom iracundo contra bancos e mídia sinalize, no fundo, uma ameaça que, lá adiante, vai se converter na habitual disposição de negociar. Ou “compor”, conforme o consagrado jargão petista.
O fato é que, vença quem vencer – até mesmo Lula –, vai encontrar o “Centrão” a postos, com sua lista de exigências devidamente elaborada. Não convém negligenciá-lo: a ruína política de Dilma Rousseff contou com a colaboração do agrupamento. E a alardeada capacidade de articulação política de Michel Temer transformou-se em pálida sujeição aos sucessivos enquadramentos impostos pelo grupo.
O “Centrão” evoca o vergonhoso passado político brasileiro. Mas o que é desalentador, mesmo, é ter a convicção de que ele vai seguir representando o futuro. Sabe Deus até quando.

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