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Lembranças de Havana (V)

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Depois de um longo percurso através de ruas largas, arborizadas e com pouco trânsito, chega-se ao Centro de Convenções de Havana. Fica distante uns cinqüenta metros de uma avenida larga e asfaltada. Sob as sombras úmidas das árvores estão estacionados antigos automóveis. Grupos de motoristas conversam animadamente e gesticulam. A vivacidade lembra as rodas de papo no interior na Bahia. Aparentemente, são choferes de praça.
            A ostensiva presença de carros tão antigos invoca a lembrança de tempos não vividos: meados dos anos 1940, primeira metade da década de 1950. O sol pálido do final de inverno, que espalha uma luz branca sobre as folhas inertes das árvores, reforça essa sensação. Faz um frio muito suave.
            O Centro de Convenções de Havana é tão pomposo quanto o nome sugere. Espaços muito amplos, atendentes devidamente fardadas, um bar onde se serve café e água mineral. Os garçons se movimentam com a solenidade dos garçons dos filmes de época. Janelas de vidro filtram a luz da manhã.
            O programa do congresso anuncia nomes consagrados, inclusive dois vencedores do Prêmio Nobel de Economia. Desde a partida, no entanto, cultivo uma convicção: nenhum discurso supera a sensação de um encontro, ao vivo, com a História. Cuba, a antiga colônia espanhola próxima à costa dos Estados Unidos, oferece esse privilégio: andar por Havana é esbarrar, a cada passo, com a História. E também com suas controvérsias.
            Depois da inscrição protocolar, retorna-se ao Vedado. Novamente no ônibus verde coreano da linha “P uno”, conforme informam os solícitos cubanos. No congresso, professores e pesquisadores marxistas brasileiros apresentam trabalhos e conversam em pequenos grupos.
            No ônibus, um garoto negro retorna da escola com cadernos e livros nas mãos. A camisa da farda é daqueles modelos antigos que existiam no Brasil até o início dos anos 1980. Fisicamente, lembra qualquer garoto residente nas periferias das grandes cidades brasileiras. Onde ele estaria se tivesse nascido no Brasil? Talvez perambulando pelas vielas d’alguma favela, talvez vendendo alguma coisa nos ônibus ou nos sinais.
            O ir-e-vir dos estudantes em Havana é uma rotina sólida e consolidada, conforme pude observar. Estudar é um rito. No ato, o indivíduo encontra seu espaço na sociedade. No Brasil, costuma ser uma incerta e precária estratégia de sobrevivência para quem nasce à deriva nas comunidades pobres.
            Na Cuba de Fidel Castro, a postura e o contexto do estudante, sem dúvida, chamam a atenção.


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