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Centro de Abastecimento e identidade cultural da Feira (II)

    
            Em artigo na semana passada defendemos a necessidade de se discutir com a comunidade qualquer mudança no Centro de Abastecimento. A prefeitura vem divulgando que pretende transferir o comércio atacadista de hortifrutigranjeiros para uma espécie de porto seco, na BR 116 Norte, na saída para Serrinha. Vítima de processo semelhante há quase quatro décadas – lá em meados dos anos 1970 – a antiga feira que existia no centro da cidade foi removida para o Centro de Abastecimento e perdeu muito de sua identidade original de feira-livre.
            Bem ou mal, em quatro décadas o Centro de Abastecimento construiu uma identidade. É para lá que acorrem os visitantes que vem de dezenas de municípios e de centenas de distritos, povoados e comunidades rurais das imediações; Funcionalmente, é lá que se abastece o robusto e pouco estudado comércio dos bairros feirenses.
É lá que os donos de centenas de mercadinhos da Feira de Santana compram para abastecer sua clientela, assim como os restaurantes que vendem comida barata no centro da cidade e os ambulantes que desfilam pelas ruas com carrinhos-de-mão forrados de tomates, cebolas e pimentões, poupando o feirense apressado da “descida” até o Centro de Abastecimento.
Desmembrar uma das atividades mais vibrantes do entreposto pode ter um efeito imprevisível sobre as demais atividades, gerando impactos inclusive sobre as dimensões econômica e cultural. Se foi realizada alguma audiência pública para discutir a questão – se houve, somente as almas que erram pelo entreposto foram comunicadas – a consulta restringiu o leque de interessados, comprometendo o resultado. Mas, pelo visto, não houve.
Distância
O fato é que, funcionando na longínqua BR 116, o comércio atacadista de hortifrutigranjeiros vai produzir impactos sobre o bolso do feirense. Ou alguém acha que se gasta o mesmo combustível entre o Tomba e a BR 116 Norte? Ou entre o Sobradinho, Baraúnas, Rua Nova e Queimadinha e o entreposto que se pretende construir? No final das contas, quem arcará com a elevação dos custos será o consumidor.
A redução do movimento no Centro de Abastecimento também não será benéfica para os próprios comerciantes do entreposto. Entre idas e vindas, os profissionais que se dedicam ao comércio atacadista almoçam ou tomam café-da-manhã nos restaurantes, bebem cerveja ou pinga, adquirem produtos, movimentam a economia local, fortalecendo a ampla rede de trabalhadores.
Faltarão carretos para os que ganham a vida como carregadores e os vendedores ambulantes não encontrarão a mesma freguesia para o amendoim cozido, o pastel, o suco e o bolo que se vendem em lanchonetes improvisadas em bicicletas.
Transporte caro
Quem observa os movimentos da Feira de Santana nos finais de tarde com mais atenção percebe que inúmeros trabalhadores do Centro de Abastecimento voltam pra casa a pé, porque o dinheiro caro da passagem de ônibus é poupado para o pão ou para o feijão que alimenta os filhos desses trabalhadores. Na longínqua BR 116, como muitos deles fariam?
Talvez a iniciativa da prefeitura tenha inspiração na Ceasa que funciona lá na rodovia entre o Centro Industrial do Aratu e o Aeroporto, em Salvador. A questão é que a Feira de Santana foi ocupada a partir de um centro para as bordas da cidade (modelo radial-concêntrico), ao contrário de Salvador, cuja população se distribuiu ao longo da orla. Outra diferença é que Salvador nunca teve uma feira-livre polarizadora de sua atividade comercial, como aqui. Por essas duas diferenças essenciais nota-se que a transplantação de modelos é mais complexa do que aparenta.
Conforme já dito no artigo anterior, intervenções no Centro de Abastecimento são imprescindíveis. O espaço degrada-se ano a ano, mas não se pensam alternativas sólidas. A proposta do novo entreposto, ao que parece, tem duas funções muito claras: transferir o problema de lugar, sem resolvê-lo (ou escondendo-o); e acrescentar mais uma firula administrativa ao repertório eleitoral em 2012.

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