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Lembranças de Havana (III)

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Logo à saída do aeroporto se vê o famoso out door anunciando que, na noite em que o viajante chega em Havana, milhões de crianças dormirão na rua no mundo, mas que nenhuma delas é cubana. No mais, o entorno do aeroporto Internacional José Martí é pouco povoado, como tantos outros aeroportos espalhados pelo mundo. O que desola é a escuridão intuída antes do desembarque: de fato, as luzes são fugidias e a escuridão é monótona e incomoda.
            O motorista do táxi é jovem e liga o rádio do carro. Os sons contagiantes da música caribenha se elevam, ganham a madrugada um pouco fria, afastam o clima de desolação das longas avenidas desertas. Roda-se bastante e, aos poucos, as incontáveis árvores que lançam sombras largas cedem lugar a um casario sóbrio, antigo e mal-conservado.
            Quem está acostumado às ruas estreitas do centro das cidades colonizadas pelos ibéricos, enxerga alguma familiaridade à medida que o automóvel avança: a disposição dos imóveis, o estilo arquitetônico, as fachadas descuidadas, tudo lembra as antigas capitais dos trópicos.
            “Aqui se ouve todos os estilos. Não há censura”, apressa-se em explicar o motorista do táxi, quando indagado sobre as preferências musicais dos cubanos. O ecletismo é dispensável, pois a música caribenha é contagiante e resgata momentos alegres, mesmo com as ruas desertas e a escuridão que se abate, pesada.
            O Hotel Vedado fica no bairro do mesmo nome, bem perto de La Habana Vieja. Fica perto também do famoso e aristocrático Hotel Nacional, distante algumas quadras. Graham Greene descreve o bairro com notável precisão em  “Nosso Homem em Havana”. Á noite, no entanto, é difícil perceber os detalhes e estabelecer uma identidade.
Os hóspedes são recebidos com gestos solenes à porta do hotel. No saguão o ambiente lembra aqueles filmes antigos, da primeira metade do século XX: sombras que se insinuam, a fumaça de cigarro onipresente, formando uma nuvem densa, azul, drinques coloridos em copos do bar e a música furiosamente alegre. Casais dançam e o ruído das conversas e das risadas ressoa.
Um funcionário com bigode ruivo e óculos com armação antiga comanda a recepção. Examina, lento e burocrático, a tela do computador. Ao redor mulheres conversam, riem alto e fumam, entretidas. Os móveis são antigos, soam exóticos aos olhos acostumados ao consumismo capitalista.
Desembaraça-se a hospedagem. Uma funcionária, que devora um cigarro, é orientada a acompanhar o hóspede até o quarto. Com umas tragadas sôfregas, termina o cigarro e joga-o, displicente, numa lixeira. Entra no elevador escuro. Funcionária estatal, não exibe a humilde submissão dos empregados dos hoteis burgueses, como se dizia no passado.
 É uma das primeiras surpresas da viagem.

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