No dia 23 de julho de 1949, desembarcou em Salvador, de um vôo procedente do Recife, o escritor franco-argelino Albert Camus. Jornalista, militante político, dramaturgo, ensaísta, mas sobretudo escritor já consagrado, Camus está entre as mais célebres personalidades literárias a conhecer a Bahia e registrar suas observações que posteriormente, deram origem a um livro, “Diário de Viagem”. À época Camus já havia lançado dois dos seus mais importantes livros: os romances “O Estrangeiro” e “A Peste”, que contribuíram para que obtivesse o Nobel de literatura em 1957. Ei-lo em suas primeiras impressões sobre a Bahia: “Três horas de vôo, e depois vêem-se surgir, sobre uma imensidão, colinas curtas cobertas de neve. Ao menos, é a impressão que me dá essa areia branca, muito freqüente aqui”.
Após o desembarque e a viagem até o centro da cidade, através da atual Estrada Velha do Aeroporto, o autor continua o registro de suas impressões: “A terra é totalmente vermelha. Bahia, onde só se vêem negros, parece-me uma imensa casbah fervilhante, miserável, suja e bela”. No almoço, o escritor sintetiza o espírito da culinária local: “Comemos pratos tão apimentados que fariam andar paralíticos”. Mais adiante, Camus compara as baías de Todos os Santos com a da Guanabara, que conhecera dias antes, no seu desembarque no Brasil: “Prefiro essa baía à do Rio, muito espetacular para o meu gosto. Esta, pelo menos, tem uma medida e uma poesia”.
Dotado de um espírito inquieto e em plena crise intelectual, o autor associa o olhar perspicaz a seu espírito crítico. As visitas às igrejas barrocas de Salvador desagradam-no, pois enxerga exageradas semelhanças às já vistas no Recife, onde passara os dois dias anteriores. Conclui que “é a única coisa a ser vista neste país” e, então, deduz que “Resta a vida verdadeira”.
Mais adiante, o escritor nega a possibilidade de viver no Brasil e justifica: “Mas sobre esta terra imensa, que tem a tristeza dos grandes espaços, a vida é ao nível do chão e seriam necessários muitos anos para a ela integrar-se”. Em outras passagens do diário, Camus demonstra perplexidade ante a imensidão do território brasileiro, como em sua estada no Rio de Janeiro e na viagem a Iguape, município do interior paulista onde acompanhou uma festa religiosa. Na sua imaginação, a civilização era débil e poderia ser engolida pela vegetação infindável.
No mesmo dia Camus participou de uma conferência na Universidade da Bahia e anotou, com espanto, o regulamento do Palace Hotel da Bahia. Na manhã seguinte deslocou-se até a praia de Itapuã, através de uma estrada que registrou estar esburacada. Eis sua impressão: “É uma aldeia de pescadores em palhoças. Mas a praia é bela e selvagem, o mar espumante ao pé dos coqueiros”. Adiante, o autor lamenta não poder tomar banho de mar em função de uma gripe, “que não acaba nunca e me abate”.
Ex-tuberculoso, Albert Camus voltava a enfrentar a doença, que retornava na forma aparente de uma gripe. A doença e a crise em que se encontrava tornavam o pensamento no suicídio recorrente. Estas idéias são responsáveis pelas passagens mais angustiantes da obra. Mais que o registro de impressões de um viajante extasiado (ou entediado), o livro é o testemunho dos dilemas que acossam seu espírito privilegiado e no qual personagens e fatos possuem dimensão apenas à medida que provocam reações em seu autor.
Depois da visita a Itapuã, Camus comparece, à noite, a um ritual de candomblé. Os cantos e danças não lhe provocam grandes sensações e apenas uma dançarina negra desperta seu interesse: “Essa Diana negra é de uma graça infinita”. Enfastiado, Camus conclui: “O resto não vale grande coisa. Os ritos degradados exprimem-se em danças medíocres”.
Na manhã seguinte Camus preparou-se para retornar ao Rio de Janeiro. Em suas andanças pelo Brasil (visitou, além de Salvador, Recife, Rio de Janeiro e Iguape, São Paulo e Porto Alegre) e por outros países da América do Sul (Uruguai, Argentina e Chile, onde testemunhou agitações populares), debateu intensamente, freqüentemente transpondo os limites literários para embrenhar-se em discussões de cunho mais abrangente. É o que se percebe no trecho seguinte:
“Quanto mais veloz o avião, menos importância têm a França, a Espanha e a Itália. Elas eram nações, ei-las províncias e, amanhã, aldeias do mundo. O futuro não está em nós, e nada podemos contra esta movimento irresistível. A Alemanha perdeu a guerra porque era nação e porque a guerra moderna exige os meios de impérios. Amanhã, serão necessários meios de continentes. E eis os dois grandes impérios partindo para a conquista do seu continente”. Escritas em 1949, estas observações são uma previsão precisa da corrida belicista das décadas seguintes, aliada à aplicação de uma tecnologia intensiva que reduziu não somente os espaços para a guerra, mas para o intercâmbio internacional, no antigo fenômeno rebatizado como “globalização”.
Ainda que se contestem os méritos da descrição de um fenômeno vigente, é inegável a acuidade na previsão dos seus desdobramentos. Camus, todavia, não é apenas desencanto: “Que fazer? A única esperança é que nasça uma nova cultura, e que a América do Sul talvez ajude a temperar a besteira mecânica”.
Albert Camus viajou durante cerca de dois meses pela América do Sul. As observações de um fenômeno em Iguape renderam, após sua volta a Paris, um conto chamado “A Pedra que Cresce”. Ainda que abalado pelo retorno da tuberculose e pela idéia do suicídio, o autor fez preciosas observações sobre a América do Sul e seu povo e privilegiou a Bahia com uma visita à época comparável apenas à viagem de Jean Paul Sartre, já na década de 60.
Nascido na Argélia em 1913, Camus formou-se em Letras pela Universidade de Argel, escreveu peças teatrais, viajou pela Europa e participou da resistência à ocupação alemã na 2ª Guerra Mundial, antes de estrear na literatura com “O Estrangeiro”, em 1941. Anos depois lançou “A Peste” e, em 1946, viajou aos Estados Unidos para uma série de conferências, o que repetiu em 1949 na América do Sul. Faleceu tragicamente em um acidente automobilístico em janeiro de 1960, na plena maturidade intelectual e já consagrado com o Nobel.
*Originalmente publicado no Jornal Tribuna Feirense em fevereiro de 2002
Prezado André,
ResponderExcluirMeu nome é Samara Geske e sou pesquisadora da Universidade de São Paulo. Este ano é o centenário do escritor Albert Camus e estamos organizando uma exposição sobre sua passagem pelo Brasil em 1949. Como você bem colocou em seu texto, em sua viagem ele foi até Salvador e chegou a dar uma conferência na Universidade (hoje Federal da Bahia?). Gostaria de saber se existe algum tipo de documentação dessa passagem na Universidade como fotografias ou se saberia me indicar quem possua essa informação. Esse material é muito precioso e certamente enriqueceria nossa exposição, além disso, Salvador estaria representada uma vez que já encontramos documentos no Rio, Porto Alegre e Iguape.
Atenciosamente,
Samara Geske