Os programas de transferência de renda no Brasil têm sido objeto de ataques sistemáticos desde que foram implementados pelo ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Alguns dos adversários mais ferrenhos estão entre os políticos do Nordeste, lastimosos pela oportunidade perdida de garantir mais votos, mostrando-se como benfeitores privados do que é feito com recursos públicos. Nos últimos meses, no entanto, o discurso mudou porque as eleições se aproximam e os partidos mais conservadores encolhem a cada pleito.
Engraçado é que a indignação contra o uso do “rico dinheirinho” do povo, que poderia ir para as empreiteiras, os bancos privados ou o caixa dois das campanhas eleitorais, não se vê contra o assistencialismo oficial ou oficialesco, existente desde que o Brasil era um país de gente séria, quando a Casa Grande e a Senzala conviviam em perfeita harmonia.
A explicação é muito simples e tem raízes antigas. Naqueles idos, os açoites dos capatazes, a espoliação furiosa contra os escravos e o terror onipresente imposto pelos coronéis era suavizada pela benemerência das sinhás e sinhazinhas. Afinal, eventualmente ofertavam algum molambo para cobrir um escravo nu, cooptavam para a Casa Grande algum cativo mais dócil e, condescendentes, até permitiam a felicidade momentânea de algum folguedo da África esquecida.
Calculada ou não, essa bondade migrou para as instituições republicanas em meados do século XIX. Mas ali já não existiam escravos: as piedosas senhoras da elite republicana dedicavam-se a atenuar o sofrimento dos ex-escravos desempregados e de toda a caterva que teimava em não trabalhar.
Dinheiro Público
Em algum momento do século XX a benemerência passou a ser praticada com dinheiro público e as primeiras-damas assumiram a liderança dessas ações despojadas. Sem função produtiva no Brasil machista do século XX, as damas da elite em sua bondade congênita insinuavam, assim, mais um traço marcante da sociedade da época.
Tanta nobreza traduzia-se em pães distribuídos com a ajuda de clérigos e beatas desocupadas, em agasalhos surrados para figuras desnudas e na tradicional sopinha dos desvalidos, que tanto contribuiu para assegurar a harmonia de classes quando os comunistas ameaçavam diluir a abençoada Família, a santa madre Igreja e a sacrossanta Propriedade Privada.
Aos poucos, porém, algumas mulheres foram assumindo funções executivas a partir de meados do século XX. Os respectivos maridos, todavia, não assumiam a condição de primeiros-cavalheiros: no máximo, as sociedades beneficentes sustentadas por dinheiro público – ou não – eram desfalcadas de uma xícara para o chá. Afinal, à elite masculina são reservados papéis mais dignificantes, como contribuir para o progresso da sociedade.
Votos
As anacrônicas instituições que até hoje garantem a sopinha dos desvalidos ainda subsistem. Na Bahia, por exemplo, ainda existem as Voluntárias Sociais. E que de voluntárias só tem o nome, já que recebem salários pela bondade que praticam.
No leque das reformas que a Bahia necessita deve constar na pauta a extinção de instituições como essa. A caridade deve ser exercida por instituições privadas, sem vínculos com o Estado. Qualquer liberal autêntico – o que não existe na Bahia – se opõe a sistemas como esse.
Às primeiras-damas, fica reservado o desafio de servir de referência de emancipação feminina. Afinal, o tempo da Casa Grande está passando e, na média, as mulheres revelam-se tão competentes quanto os homens. Figurar como paradigma da bondade, enquanto os cavalheiros se ocupam de funções “mais sérias” é apenas perpetuar o atraso crônico que teima em persistir. Atraso de classe e de gênero.
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