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O asfalto que sepulta lembranças

 

A descoberta não faz muito tempo, talvez duas semanas: asfaltaram a rua Deputado Rui Santos, ali no Sobradinho. Ia à afamada feirinha do bairro numa manhã de domingo quando, ao dobrar na rua da Liberdade, me deparei com a reluzente camada de asfalto. Coisa recente, intui, constatando a transformação, irreversível. Fiquei até com a impressão de que o cheiro de betume ainda dançava no ar.

Não, não defendo ruas esburacadas, nem renego o festejado progresso que o asfalto, supostamente, denota. Mas é que a Deputado Rui Santos – só fui descobrir o nome correto da rua há pouco, numa consulta à internet – faz parte do meu passado.

Não recordo dela na poeira, como deve ter sido no começo. Recordo-a calçada – sempre as mesmas pedras ásperas do calçamento feirense, azuladas e róseas – abrigando uma infinidade de disputas de “golzinho” na minha infância e adolescência. “Golzinho” era diversão simples, sem sofisticação: pedras ou sandálias demarcavam o gol estreito, medido pelos pés; uma surrada bola de borracha fazia a festa da aguerrida dupla ou trio que escalava-se, por time, para a diversão.

O campo era o calçamento, as arquibancadas eram as calçadas. Era tempo de poucos automóveis em circulação. Assim, a diversão se prolongava, as interrupções para a passagem dos carros ou de pedestres – o fato impunha a paralisação do baba – eram raras.

Nem sempre a diversão terminava bem: às vezes, esfolavam-se dedos – era comum até arrebentar o um deles, o doloroso corte vazando sangue – e mergulhar os pés na lama era rotina. Seca, grudada à pele, a lama exalava um odor marcante, desagradável. Às vezes, uma chuva abrupta lavava os jogadores, que se sentiam na Fonte Nova, no Maracanã, defendendo as cores dos seus times em jornadas épicas. Fantasias de menino.

Aquelas pedras ásperas, portanto, testemunharam gloriosas e despojadas jornadas esportivas. Rijas e másculas divididas, dribles desconcertantes, passes precisos, rudes espanadas, falhas gritantes, tudo se registrou por ali. Assim como as comemorações esfuziantes, palavrões, reclamações e – às vezes – frustradas ameaças de briga. Todo mundo se conhecia e – no eterno presente da vida de menino – parecia que nunca ia se separar.

Confesso que jamais me preocupei em saber quem era o Rui Santos que batiza a rua. A ignorância não me fez perder grande coisa: também numa consulta à internet, constato que o político nasceu em Casa Nova, foi prefeito de Ubaitaba e exerceu mandato parlamentar entre as décadas de 1940 e 1960. Também lecionou na Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia.

É necessário reconhecer que o asfalto é mais sisudo, mais compatível com a personagem notável que empresta nome à artéria. Mas que foi fácil constatar que parte do meu passado tinha sido sepultada por “dois dedos” de betume, ah, isso não foi...

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