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Funcionário público é espécie em extinção

Pouca gente comenta, mas o serviço público no Brasil vive um momento de inflexão radical. Talvez as transformações sejam as mais drásticas desde a década de 1930, quando as reformas tocadas pelo então presidente Getúlio Vargas ajudaram a configurar muito do que se conhece do serviço público atualmente. De qualquer forma, as mudanças são as mais intensas desde a Constituição de 1988, quando o Brasil aspirava ares democráticos e renovadores.
Recentemente, o primeiro impulso transformador foi dado pela demonização dos funcionários públicos. Pelo visto, esta etapa está quase concluída. Incompetência, salários vultosos, vantagens nababescas, ineficiência e inépcia são rótulos que, incessantemente, são colados no funcionalismo público.
Note-se que o conjunto dos servidores públicos, nessas vituperações, paga pelos privilegiados concedidos a castas específicas. Mas, obviamente, não se trata de desinformação: o movimento é deliberado. O passo seguinte, conforme já se percebe, é avançar sobre os direitos desses servidores.
Há quem apoie a ofensiva, movido pela crença ingênua que caminhamos para um Estado mínimo com o máximo de eficiência, conforme apregoa a doutrina liberal. Esses se encaixam na condição de inocentes úteis: movem-se iludidos para legitimar outros interesses, nada nobres, que as manobras recentes ajudam a viabilizar.

Precarização

A precarização do serviço público não visa, na verdade, reduzir o tamanho do Estado. Visa substituir o modelo atual por outro, mais rentável em termos partidários, cujos primeiros sinais já são visíveis. A ideia fundamental é trocar o modelo do servidor estável, efetivo, pela gestão terceirizada e pelos vínculos precários e transitórios de trabalho. Será o paraíso do toma-lá-dá-cá.
No Brasil, quem vence eleição não deseja encontrar servidores estáveis, qualificados, capazes de tocar a oferta de serviços públicos, independente do grupo político de plantão no poder. Almeja-se o butim integral: indicar cargos comissionados e toda a fauna de penduricalhos administrativos possível. Isso para melhorar a oferta de serviços? Não: para acomodar os indicados dos membros do consórcio eleitoral vencedor.
Abandona-se, assim, a perspectiva do Estado voltado para a oferta de serviços essenciais à população. O que se pretende, na verdade, é vitaminar a lógica do balcão, loteando a administração entre os felizes integrantes do consórcio vencedor. Serviço para o cidadão fica num segundo plano. Nada pessoal: a lógica do toma-lá-dá-cá é autônoma, é quase um fim em si mesmo.
Para isso, instrumentos diversos foram sendo viabilizados. No começo, ocorreu a terceirização de serviços não finalísticos, como a limpeza, a vigilância e a manutenção. Depois, vieram os contratos temporários – o famoso Reda – que de tão frequentes tornaram-se permanentes. Mudam as peças no tabuleiro, mas os dedos que movem as peças permanecem os mesmos. Por fim, vieram as organizações sociais amigas que assumem serviços públicos concedidos mediante as afamadas parcerias público-privadas.

Indicações

Esquemas do gênero alavancaram o balcão de maneira impressionante desde a Constituição de 1988. Antes, quem tinha padrinho era indicado, via os famosos “bilhetinhos”, para os cargos públicos. Muitos se tornaram efetivos, mas a rentabilidade política do sistema era baixa: os modelos atuais – dinâmicos, variados e rotativos – são muito mais rentáveis, pois alcançam circuitos maiores.
Esse modelo é irrevogável? Não, ao contrário do que se alardeia. Ele subsiste graças à lógica política que foi se consolidando no Brasil no pós-1988. Por aqui, política sempre foi sinônimo de distribuição de benesses. Não se tornou diferente no mais longo período de vigência democrática, até a ascensão de Michel Temer.
Justiça seja feita: o modelo estende-se por todo o espectro partidário, bordejando os extremos ideológicos à esquerda e à direita. Glutona, a ex-esquerda abraçou com sofreguidão os esquemas que fustigava até chegar ao poder; e aqueles à direita mantiveram-se coerentes, felizes com a geleia geral instituída na última década.
Por fim, é necessário também fazer justiça: muita gente competente, séria e avessa aos jogos do poder ocupa, transitoriamente, cargos públicos. Poderiam, sem dúvida, integrar os quadros do Estado com desempenho satisfatório. Mas concurso, hoje, está fora de moda. Simplesmente porque não representa filão para a exploração política. A população precisa reagir, mas ninguém sabe quando isso vai acontecer. Por enquanto, a única coisa que brilha no horizonte é o lustro do balcão...

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