Pular para o conteúdo principal

A loja com aroma personalizado de carne

 

Foi semana passada, à tarde, pouco depois da chuva que caiu sobre o centro da Feira de Santana, ali na Senhor dos Passos. Chuva forte, súbita, as poças se acumularam sobre o asfalto, sobre as calçadas. Depois veio o sol, a luz se refletindo sobre as tênues lâminas d'água. Pois então surgiu o sujeito, galhofeiro contumaz, irreverente, gozador incorrigível. Respondeu, solene, ao cumprimento, informou desde já que tomara juízo, era sujeito sério agora, abandonara a pândega, a zoeira. Mais: tornara-se empresário, gastara a vida à toa e, agora, desenvolvera aptidão para ganhar dinheiro.

-Vou ganhar muito dinheiro neste trimestre agora!

Ressabiado com sua zombaria habitual, aguardei. Ele, de lá, examinava-me, o olho perscrutador. No fundo, uma indisfarçável ponta de ironia. Ansioso, foi logo desfazendo o silêncio, não era de perder tempo com suspense:

-Vou 'enricar' na campanha eleitoral vendendo camiseta de Jair Bolsonaro. Muita gente se deu bem em 2018. Pois eu vou me dar melhor ainda agora: vou vender camiseta personalizada, vai ser um sucesso só!

Pensei em argumentar que, pelo menos até agora, Jair Bolsonaro, o “mito”, não está muito cotado nas pesquisas eleitorais. A inflação vertiginosa, a paralisia econômica, os escândalos de corrupção, a monolítica incompetência, a disposição para a violência, tudo isso parece ameaçar o projeto reeleitoral. Mas o homem, autoproclamado empresário vocacionado, não parecia disposto a ouvir comentários, objeções. Foi ao ponto:

-Sabe aquela camiseta com a cara de Bolsonaro que fez sucesso em 2018?

Lembrei do olho vazio, de peixe morto, do lábio contraído, inexpressivo. Aguardei. Ele prosseguiu:

-Vou raproveitar aquela estampa. Só que com um design inovador: colocarei ele no meio e Arthur Lira e Ciro Nogueira do lado, as três cabeças formando uma pirâmide. Vai ser um sucesso!

Gente bem informada afirma que, hoje, Arthur Lira (PP-AL) – presidente da Câmara dos Deputados – e Ciro Nogueira (PP-PI) – chefe da Casa Civil – presidem o Brasil. Essa conversa de gerir é chata, assim, dizem que o “mito” terceirizou o governo, tocado agora por Lira e Nogueira, expoentes do “Centrão”. O “Centrão”, aquele mesmo agrupamento que o “mito”, sua prole e seus milicos fustigavam, mas que agora...

-Também vou lançar linhas temáticas: Sabe a Globo Lixo? A coisa virou! Pretendo lançar uma camiseta com a cara de Bolsonaro e o símbolo da Globo! Não vai ter para quem quer!

Mantive o silêncio. Ele continuou:

-Vai ter camiseta da rachadinha também. O problema é o símbolo, pornográfico, talvez não tenha muita saída, o povo é pornográfico na economia, mas conservador nos costumes. Mas vai ter também as camisetas personalizadas do rearmamento, do salmão, da picanha, do Viagra, das próteses penianas, até da Bíblia com foto de pastor...

Um frouxo de riso me sacudiu: os comentários eram dispensáveis. A figura mantinha a mesma verve satírica, para a pândega o tempo não passa. Por fim, ele adotou uma teatral expressão de dúvida e lamentou:

-Fosse eu cientista, inventava um tecido com cheiro de carne, ia fazer o maior sucesso. Já pensou? Brasileiro, daqui a pouco, nem sabe mais o que é carne...

Atento, contestei:

-Mas como afastar os cachorros? Alguém sai por aí, os cachorros na rua vão atrás...

A observação o fez pensar. Cogitou fazer camisetas com aromas personalizados – filé para os ricos, chupa-molho para os pobres -, mas o problema persistia, insolúvel. Por fim, afastou a ideia com um gesto enfático. O olho brilhou:

-Então, depois da eleição, vou alugar um imóvel, abrir um espaço de aromas. Só cheiro de carne, sem a carne, claro. Fica muito mais barato e o sujeito sai na maior onda, embriagado só com o cheiro de carne!

Lembrei dos espaços legalizados para o consumo de drogas em alguns países, pensei no perrengue do brasileiro para comer todo dia e cheguei à conclusão que o sujeito pode ter razão. Para evitar a tentação de oferecer sociedade – basta o “mito” se reeleger para o negócio ficar viável – segui adiante, alegando compromissos, uma ponta de cobiça brilhando no olho...

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Parlamento não digere a democracia virtual

A tentativa do Congresso Nacional de cercear a liberdade de opinião através da Internet é ao mesmo tempo preocupante e alvissareira. Preocupante por motivos óbvios: trata-se de mais uma ingerência – ou tentativa – da classe política de cercear a liberdade de opinião que a Constituição de 1988 prevê e que, até recentemente, era exercida apenas pelos poucos “privilegiados” que tinham acesso aos meios de comunicação convencionais, como jornais impressos, emissoras de rádio e televisão. Por outro lado, é alvissareira por dois motivos: primeiro porque o acesso e o uso da Internet como meio de comunicação no Brasil vem se difundindo, alcançando dezenas de milhões de brasileiros que integram o universo de “incluídos digitais”. Segundo, porque a expansão já causa imensa preocupação na Câmara e no Senado, onde se tenta forjar amarras inúteis no longo prazo. Semana passada a ingerência e a incompreensão do que representa o fenômeno da Internet eram visíveis através das imagens da TV Senado:

Cultura e História no Mercado de Arte Popular

                                Um dos espaços mais relevantes da história da Feira de Santana é o chamado Mercado de Arte Popular , o MAP. Às vésperas de completar 100 anos – foi inaugurado formalmente em 27 de março de 1915 – o entreposto foi se tornando uma necessidade ainda no século XIX, mas só começou a sair do papel de fato em 1906, quando a Câmara Municipal aprovou o empréstimo de 100 contos de réis que deveria custear sua construção.   Atualmente, o MAP passa por mais uma reforma que, conforme previsão da prefeitura, deverá ser concluída nos próximos meses.                 Antes mesmo da proclamação da República, em 1889, já se discutia na Feira de Santana a necessidade de construção de um entreposto comercial que pudesse abrigar a afamada feira-livre que mobilizava comerciantes e consumidores da região. Isso na época em que não existia a figura do chefe do Executivo, quando as questões administrativas eram resolvidas e encaminhadas pela Câmara Municipal.           

“Um dia de domingo” na tarde de sábado

  Foi num final de tarde de sábado. Aquela escuridão azulada, típica do entardecer, já se irradiava pelo céu de nuvens acinzentadas. No Cruzeiro, as primeiras sombras envolviam as árvores esguias, o casario acanhado, os pedestres vivazes, os automóveis que avançavam pelas cercanias. No bar antigo – era escuro, piso áspero, paredes descoradas, mesas e cadeiras plásticas – a clientela espalhava-se pelas mesas, litrinhos e litrões esvaziando-se com regularidade. Foi quando o aparelho de som lançou a canção inesperada: “ ... Eu preciso te falar, Te encontrar de qualquer jeito Pra sentar e conversar, Depois andar de encontro ao vento”. Na mesa da calçada, um sujeito de camiseta regata e bermuda de surfista suspendeu a ruidosa conversa, esticou as pernas, sacudiu os pés enfiados numa sandália de dedo. Os olhos percorriam as árvores, a torre da igreja do outro lado da praça, os táxis estacionados. No que pensava? Difícil descobrir. Mas contraiu o rosto numa careta breve, uma express