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Impressões sobre o islamismo radical em Paris

                                
                Entre os meses de junho e julho realizei uma antiga aspiração: conhecer Paris. Por lá, percorri o circuito turístico tradicional: visitei o Sena e suas águas calmas e escuras, admirei a imponente torre Eiffel, me impressionei com o Arco do Triunfo e com a catedral de Notre Dame, me extasiei com os Jardins de Versalhes, percorri as ruas estreitas e festivas de Montmartre, conheci relíquias de civilizações antigas visitando o Louvre e também compareci à Bastilha e à Republique, que avivaram lembranças dos livros de História. A rigor, tudo muito banal: incontáveis viajantes fazem o mesmo périplo todos os anos e registram suas impressões em infinitos relatos.
                O inusitado da viagem só aflorou agora, a partir dos terríveis atentados que abalaram a capital francesa na sexta-feira 13, deixando mais de uma centena de mortos. Em parte, é porque nos hospedamos justamente nas imediações dos locais dos atentados. Mas não só: naqueles dias intensos, fomos vizinhos de uma heterogênea comunidade islâmica e, para o observador mais atento, era visível que o ovo da serpente um dia eclodiria por ali.
                Passamos 15 dias nas imediações de Belleville, entre as estações Goncourt e Couronnes do metrô de Paris. Ali consolidou-se uma comunidade muçulmana que agrega árabes, argelinos, tunisianos e inúmeras etnias de negros islamizados da África Subsaariana. Uma antiga mesquita atrai essa gente, todos os dias, para cumprir seus rituais religiosos, sobretudo às sextas-feiras e ao longo do Ramadã, o mês sagrado dos seguidores de Maomé.
                No entorno, organizam-se intensas atividades comerciais para esse público: uma livraria mercadeja exclusivamente publicações do Islã, mercearias vendem produtos Halal – alimentos produzidos conforme preconiza o islamismo –, uma loja sisuda vende burcas e véus e minúsculos locutórios fazem ligações telefônicas internacionais para os mais remotos destinos na África e na Ásia. Até aqui, tudo normal: é o circuito econômico que se organiza em torno de uma densa comunidade estrangeira.
                Ao longo do dia, pelas ruas charmosas das imediações, percebe-se o movimento intenso dos muçulmanos. Nessa fauna, todavia, destacam-se as mulheres: inteiramente cobertas por suas vestes escuras, encobrem até o rosto – o que é proibido pela lei francesa – e, invariavelmente, locomovem-se mancando. Somente as mais velhas transitam sozinhas: as demais, sobretudo as mais jovens, deslocam-se acompanhadas por seus homens.

                Ovo da Serpente

                Até aqui – ressalte-se – tudo normal: é o cotidiano de uma comunidade muçulmana, presente em quase todas as partes do mundo. O exame mais atento, porém, permitia captar sinais inquietantes. Um deles é o desconforto – e, até mesmo, o ódio e o desprezo – pelo modo de vida ocidental, com mulheres que desfilam pelo verão parisiense com pernas de fora, fumando e bebendo pelos incontáveis cafés da cidade. A liberdade feminina – é visível – incomoda profundamente.
                Além da tensão permanente no ar, esse clima é reforçado pelas presenças de muçulmanos vociferando pelas esquinas em idiomas exóticos. Outros, invariavelmente agregados em magotes de três ou quatro, apenas sussurravam. Um deles – presença assídua nas imediações da livraria islâmica – doutrinava jovens, impondo respeito com sua farta barba branca; muitos, aparentemente, não exercem nenhum tipo de ocupação: passam o dia nas imediações da mesquita, provavelmente descompondo a decadência ocidental.
                Percebe-se que muitos muçulmanos não fazem nenhuma questão de integrar-se à sociedade francesa. Vários, sequer, falam os idiomas ocidentais e vivem ensimesmados em suas comunidades. O desconforto também existe em relação às demais comunidades estrangeiras: em Belleville, a tensão é grande com os chineses que se multiplicam a olhos vistos; e, mesmo compartilhando da mesma fé, os árabes e os africanos negros pouco se integram.
                A soma dessas circunstâncias – o incômodo com a cultura ocidental, o insulamento, a exposição à doutrinação radical – tão visíveis pelas ruas de Paris acabou fermentando o ódio que desembestou nos atentados. Não duvide-se que a concepção dos ataques tenha contado com a colaboração de muçulmanos residentes ali em Belleville. Afinal, fica perto do palco da tragédia.

                Os ataques não foram, meramente, uma retaliação do Estado Islâmico aos bombardeios franceses na Síria. Na verdade, foi algo mais profundo e assustador: a reação de uma ideologia obscurantista, estacionada na aurora dos tempos, ao desconforto causado por um modo de vida que lhe provoca profundo incômodo. 

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