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Governo claudica e agenda conservadora se impõe



         

As primeiras vozes reivindicando o impeachment de Dilma Rousseff (PT) e, até mesmo, um golpe que recolocasse os militares no poder ecoaram em junho de 2013, no vácuo das manifestações que paralisaram as grandes capitais do país. As primeiras passeatas focavam um problema concreto – a elevação das tarifas do transporte público – e arrebataram, de início, a juventude de classe média mais à esquerda. Não demorou, todavia, para que uma insatisfação mais difusa contra a classe política ganhasse as ruas, com um vasto leque de reivindicações que incluíam até temas conservadores, como a redução da maioridade penal, a reforma do Código Penal e o próprio impeachment da presidente.
                Ano passado, em algumas capitais, meia-dúzia de saudosistas e um magote de aloprados foram às ruas celebrar os 50 anos do golpe e, mais uma vez, rogar às Forças Armadas que retomem o poder no muque. O grande motivo era um pitoresca ameaça comunista – que fervilha apenas em cabeças delirantes – e a roubalheira na Petrobras que, à época, começava a se mostrar maior do que se imaginava.
                Com a campanha eleitoral, o ódio efervesceu a temperaturas jamais registradas desde o restabelecimento da democracia no país, há três décadas. Mais que vencer as eleições – seja com que candidato fosse – o mais relevante era destronar o Partido dos Trabalhadores. E impor uma agenda medieval ignorada pelas candidaturas mais sensatas. Não faltou, todavia, candidato nanico que surfasse nessa onda conservadora.
                A vitória do PT não arrefeceu a exaltação dessa direita mais atrasada. Ao contrário, realimentou os discursos golpistas, a defesa de um liberalismo autoritário, o ódio contra as minorias e as parcelas historicamente excluídas da população. O próprio crescimento da bancada conservadora na Câmara dos Deputados vitaminou essas manifestações.

                “Apagão”

                O “apagão” administrativo e político desses 100 dias do novo mandato de Dilma Rousseff vem carreando lenha para a fornalha conservadora. A inflação ascendente, o desemprego em alta, os juros elevados, a paralisia nos investimentos, a desarticulação política e a visível falta de rumo colocam o governo na condição de boxeador surrado em canto de ringue.
Com todos esses problemas, esperar a formulação de uma agenda alternativa a esse leviatã conservador é até ingenuidade. Sobretudo porque o doloroso ajuste fiscal imposto à sociedade foi atribuído pelo petismo à oposição durante a campanha. Pelo visto, por ora, o governo não conseguirá ir muito além de tentar equilibrar suas próprias contradições.
                Com isso, tome imposição de agenda. É o caso do avanço da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, por exemplo. É bem provável que as bancadas da bala e do dízimo, somadas, ajudem na aprovação da medida, para êxtase dos apresentadores dos programas mundo-cão nas tevês.

                Califado Bíblico

                Sob o império do caos, até o bizarro é analisado com circunspecção. É o caso da PEC do Além, que pretende atribuir a Deus – e não ao Povo – a fonte do poder no Brasil. Em épocas menos dramáticas, renderia algumas gargalhadas, meia-dúzia de boas piadas e, logo depois, cairia no esquecimento. Hoje, não: houve quem assinasse a proposta à vera, talvez já vislumbrando um Califado Bíblico como solução para o Brasil.
                Barbaridades do gênero, a propósito, ajudam a desviar as atenções de temas cruciais para o país, como uma reforma tributária que alivie os mais pobres e efetivamente taxe os mais ricos. Mas, não: confortável com a ordem das coisas, o Congresso prefere discutir o Dia do Orgulho Heterossexual. 
                Somadas, essas bizarrices sinalizam para a quadra conservadora que aguarda o Brasil lá adiante, no entardecer do petismo. Afinal, não existe permanência perpétua no poder em sistemas democráticos. O problema é que o acúmulo de fracassos do governo nesses primeiros meses de 2015 pode pavimentar o caminho para um vigoroso retrocesso conservador mais adiante.

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