Pular para o conteúdo principal

A infância perdida nas ruas

Em pequenos grupos ou sozinhas, muitas vezes vestidas com roupas sujas e gastas, diversas crianças perambulam pelas ruas e bares da Feira de Santana vendendo doces, amendoim ou oferecendo pequenos serviços, como o fazem alguns engraxates precoces. Entre um gole e outro de cerveja, no rápido intervalo entre duas garfadas é possível ser abordado por meninos e meninas que oferecem pastilhas, doces ou – caso mais incomum – se dispõem a desenhar os clientes, apresentando lápis e folhas de papel ofício.

Nos diversos bares e restaurantes do centro da cidade e em bairros centrais como a Kalilândia se veem esses trabalhadores precoces, oferecendo seus produtos ou serviços de forma súplice. Entre uma abordagem e outra brincam, riem e às vezes até correm, resgatando retalhos de uma infância que vai se perdendo pelas ruas violentas da Feira de Santana.

Aparentemente se viram sozinhas: interpelam os fregueses, vendem, ouvem recusas e prosseguem em sua jornada. Um olhar mais atento, porém, permite deduzir que, por trás da espontaneidade infantil, há a interferência de adultos que organizam o negócio e vão explorando crianças de idades variadas, estejam esses adultos nas cercanias ou não.

Abordando desconhecidos, vagando pelas ruas em horários inadequados para crianças, meninos e meninas estão expostos a diversas formas de violência: às agressões verbais ou físicas, às drogas que se vendem facilmente pela cidade, ao aliciamento de pedófilos e outros criminosos. Isso para não falar na violência mais terrível, que é a própria condição de pequenos ambulantes pelas ruas cada vez mais inseguras.

Futuro

É bom que órgãos, conselhos e fóruns responsáveis pela preservação dos direitos de crianças e adolescentes da Feira de Santana atentem para a questão. O problema é visível para quem se dispõe a observar um pouco mais cuidadosamente as ruas e avenidas e os estabelecimentos que costumam reunir pessoas, como bares e restaurantes.

Nos cinco primeiros meses do ano mais de cem pessoas foram assassinadas no município. Provavelmente eram majoritariamente negros, jovens, residentes em bairros periféricos e com baixa escolaridade e, na maioria dos casos, foram atraídos para o sedutor e ilusório mundo do tráfico de drogas.

Vendo tantos meninos e meninas vagando pelas ruas da Feira de Santana como precoces trabalhadores informais, resta a angustiante pergunta: quantos, entre eles, não acabarão mortos de forma violenta lá adiante, no início da vida adulta? E entre os que estão sendo mortos, quantos não passaram pela experiência de vender doces nos bares da cidade?

Dívida

Fala-se que a segurança pública será o grande tema da campanha eleitoral em 2010. Debate do gênero, muito conveniente em ano eleitoral, tangencia a discussão mais necessária: a de que a violência física (assassinatos ou crimes contra a vida, por exemplo) é apenas reflexo da violência mais geral da educação sem qualidade, do atendimento médico precário, da ausência de oportunidades para os mais jovens.

Os pequenos ambulantes do centro da Feira de Santana só serão incluídos na discussão se subitamente morrerem de forma violenta. Mas mesmo assim apenas como estatística, anonimamente, para robustecer discursos. Por enquanto, seguem socialmente invisíveis, explorados pelos adultos, ignorados pelos governantes, intrusos na alegria dos adultos que ocupam as mesas multicoloridas dos bares feirenses.

Caso alguma autoridade – do Executivo, do Legislativo, do Judiciário – se disponha, pode encontrar facilmente crianças e adolescentes trabalhando como adultos nas tardes ensolaradas de sábado. E se olhar nos olhos de uma dessas crianças pode também constatar que a centelha da infância ainda brilha, vívida, no fundo desses pequenos olhos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Parlamento não digere a democracia virtual

A tentativa do Congresso Nacional de cercear a liberdade de opinião através da Internet é ao mesmo tempo preocupante e alvissareira. Preocupante por motivos óbvios: trata-se de mais uma ingerência – ou tentativa – da classe política de cercear a liberdade de opinião que a Constituição de 1988 prevê e que, até recentemente, era exercida apenas pelos poucos “privilegiados” que tinham acesso aos meios de comunicação convencionais, como jornais impressos, emissoras de rádio e televisão. Por outro lado, é alvissareira por dois motivos: primeiro porque o acesso e o uso da Internet como meio de comunicação no Brasil vem se difundindo, alcançando dezenas de milhões de brasileiros que integram o universo de “incluídos digitais”. Segundo, porque a expansão já causa imensa preocupação na Câmara e no Senado, onde se tenta forjar amarras inúteis no longo prazo. Semana passada a ingerência e a incompreensão do que representa o fenômeno da Internet eram visíveis através das imagens da TV Senado:

Cultura e História no Mercado de Arte Popular

                                Um dos espaços mais relevantes da história da Feira de Santana é o chamado Mercado de Arte Popular , o MAP. Às vésperas de completar 100 anos – foi inaugurado formalmente em 27 de março de 1915 – o entreposto foi se tornando uma necessidade ainda no século XIX, mas só começou a sair do papel de fato em 1906, quando a Câmara Municipal aprovou o empréstimo de 100 contos de réis que deveria custear sua construção.   Atualmente, o MAP passa por mais uma reforma que, conforme previsão da prefeitura, deverá ser concluída nos próximos meses.                 Antes mesmo da proclamação da República, em 1889, já se discutia na Feira de Santana a necessidade de construção de um entreposto comercial que pudesse abrigar a afamada feira-livre que mobilizava comerciantes e consumidores da região. Isso na época em que não existia a figura do chefe do Executivo, quando as questões administrativas eram resolvidas e encaminhadas pela Câmara Municipal.           

“Um dia de domingo” na tarde de sábado

  Foi num final de tarde de sábado. Aquela escuridão azulada, típica do entardecer, já se irradiava pelo céu de nuvens acinzentadas. No Cruzeiro, as primeiras sombras envolviam as árvores esguias, o casario acanhado, os pedestres vivazes, os automóveis que avançavam pelas cercanias. No bar antigo – era escuro, piso áspero, paredes descoradas, mesas e cadeiras plásticas – a clientela espalhava-se pelas mesas, litrinhos e litrões esvaziando-se com regularidade. Foi quando o aparelho de som lançou a canção inesperada: “ ... Eu preciso te falar, Te encontrar de qualquer jeito Pra sentar e conversar, Depois andar de encontro ao vento”. Na mesa da calçada, um sujeito de camiseta regata e bermuda de surfista suspendeu a ruidosa conversa, esticou as pernas, sacudiu os pés enfiados numa sandália de dedo. Os olhos percorriam as árvores, a torre da igreja do outro lado da praça, os táxis estacionados. No que pensava? Difícil descobrir. Mas contraiu o rosto numa careta breve, uma express