Pular para o conteúdo principal

A holandesa em Cachoeira

 

Aqui da Feira de Santana não ficaram impressões marcantes: a sólida vocação rodoviária; o asfalto, o turbilhão de veículos, o trânsito caótico; o verde escasso, a pouca sombra que espanta precariamente o calor, mesmo no inverno; o emaranhando de placas, paineis, banners, coloridos, apelativos, poluidores; a azáfama comercial, quase palpável, que tensiona a atmosfera; sobretudo a malha urbana que se espicha – longa, plana, sufocantemente horizontal – esmagando, com seus tentáculos, a Caatinga e a Mata Atlântica das cercanias.

A BA 502 despertou sentimentos contraditórios: a buraqueira na pista, a poeira às margens da estrada, as fachadas descoradas, tristonhas, das empresas, a desolação dos depósitos, dos galpões industriais, a lufa-lufa nas oficinas mecânicas, nas borracharias, nas lojas de auto-peças, nos bares e restaurantes com suas placas vermelhas, amarelas, chamativas.

Mais adiante, porém, bucólicas comunidades rurais – coloridas pelas festivas bandeirolas juninas – ostentavam sua rotina pacata: comadres e compadres papeando, descompromissados, crianças se divertindo, a lida no comércio miúdo, as tarefas nas roças de milho, nos balcões das bodegas. Em curvas ou aclives, o horizonte majestoso se insinuando às margens da pista, com o infindável suceder de colinas curtas, redondas, azuladas, banhadas de sol.

À frente, porém, há Cachoeira. Conceição da Feira com seu comércio agitado, seus sobrados antigos, solenes, sua periferia sufocada em vielas estreitas, sua elite desfilando em caminhonetes possantes pouco chamam a atenção. Impregnada de desconcertante pretérito, desperta uma inesperada melancolia, inexprimível.

Em Cachoeira, no entanto, a vida não goteja, transborda, aos borbotões. A simbiose do passado com o presente, suas distintas geografias – África, América Central e Brasil coexistem no vale verdejante, cercado por íngremes paredões vegetais –, a pulsante cultura que molda o povo afável, hospitaleiro, singular mesmo na Bahia, de tanta simpatia. É o que magnetiza os visitantes.

Ali, viajantes enxergam uma peculiar condensação de culturas de insuspeitos lugares remotos. A fé e a religiosidade africanas, a musicalidade e a pulsação do Caribe, a doce cordialidade da Baía de Todos os Santos, do Recôncavo que recorta, inspira e dá nome àquelas cercanias. Há, também, a aura do lugar, que contagia desde o começo da tortuosa descida pelas estradas estreitas.

-É como estar no Caribe, na África, nos pulsantes bairros negros das metrópoles!

Quem opina, a pronúncia difícil e o sotaque carregado, é a holandesa que se aventura pelas ruas estreitas, irregulares, ladeadas pelos casarões malcuidados da Heroica Cachoeira. Às margens do Paraguaçu ela lavou os olhos com o azul daquelas águas, encantou-se com a arquitetura antiga – mesmo com tantos imóveis maltratados, ameaçando desabamento -, imergiu na sincrética cultura religiosa, regalou-se com a culinária local, a maniçoba mereceu entusiasmados elogios.

Absorveu-a, sobretudo, a gente local. A ruidosa acolhida, o trato afetuoso, o sorriso constante, o prazer em viver apesar das adversidades, dos incontornáveis percalços. Impressionou-a os múltiplos passados cachoeiranos: os embates contra os portugueses, o afã libertário irreprimível no peito, a vocação comercial que o Paraguaçu impulsionava, o pujante legado cultural escanteado pelo prolongado declínio econômico, o resgate recente, a vocação acadêmica que a UFRB alavancou, as sombras atuais que pairam sobre Cachoeira e o Brasil, ameaçadoras.

Parece que, para Eline Janssen, a pujança holandesa de Amsterdã, de Roterdã e de Haia, com seu capitalismo frenético e suas grandezas seculares, ficaram miúdas diante das peripécias da surpreendente Cachoeira. Foi a sensação que transmitiu a turista deslumbrada com a fosforescência – reflexo da luz do sol sobre as águas do Paraguaçu – na tarde irretocável que se esvaía junto com o sol...

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Parlamento não digere a democracia virtual

A tentativa do Congresso Nacional de cercear a liberdade de opinião através da Internet é ao mesmo tempo preocupante e alvissareira. Preocupante por motivos óbvios: trata-se de mais uma ingerência – ou tentativa – da classe política de cercear a liberdade de opinião que a Constituição de 1988 prevê e que, até recentemente, era exercida apenas pelos poucos “privilegiados” que tinham acesso aos meios de comunicação convencionais, como jornais impressos, emissoras de rádio e televisão. Por outro lado, é alvissareira por dois motivos: primeiro porque o acesso e o uso da Internet como meio de comunicação no Brasil vem se difundindo, alcançando dezenas de milhões de brasileiros que integram o universo de “incluídos digitais”. Segundo, porque a expansão já causa imensa preocupação na Câmara e no Senado, onde se tenta forjar amarras inúteis no longo prazo. Semana passada a ingerência e a incompreensão do que representa o fenômeno da Internet eram visíveis através das imagens da TV Senado:

Cultura e História no Mercado de Arte Popular

                                Um dos espaços mais relevantes da história da Feira de Santana é o chamado Mercado de Arte Popular , o MAP. Às vésperas de completar 100 anos – foi inaugurado formalmente em 27 de março de 1915 – o entreposto foi se tornando uma necessidade ainda no século XIX, mas só começou a sair do papel de fato em 1906, quando a Câmara Municipal aprovou o empréstimo de 100 contos de réis que deveria custear sua construção.   Atualmente, o MAP passa por mais uma reforma que, conforme previsão da prefeitura, deverá ser concluída nos próximos meses.                 Antes mesmo da proclamação da República, em 1889, já se discutia na Feira de Santana a necessidade de construção de um entreposto comercial que pudesse abrigar a afamada feira-livre que mobilizava comerciantes e consumidores da região. Isso na época em que não existia a figura do chefe do Executivo, quando as questões administrativas eram resolvidas e encaminhadas pela Câmara Municipal.           

Patrimônio Cultural de Feira de Santana I

A Sede da Prefeitura Municipal A história do prédio da Prefeitura Municipal de Feira de Santana começou há 129 anos, em 1880. Naquela oportunidade, a Câmara Municipal adquiriu o imóvel para sediar o Executivo, que não dispunha de instalações adequadas. Hoje talvez cause estranheza a iniciativa partir do Legislativo, mas é que naqueles anos os vereadores acumulavam o papel reservado aos atuais prefeitos. Em 1906 o município crescia e o prédio de então já não atendia às necessidades do Executivo. Foi, então, adquirido um outro imóvel utilizado como anexo da prefeitura. Passaram-se 14 anos e veio a iniciativa de se construir um prédio único e que abrigasse com comodidade a administração municipal. Após a autorização da construção da nova sede em 1920, o intendente Bernardino Bahia lançou a pedra fundamental em 1921. O engenheiro Acciolly Ferreira da Silva assumiu a responsabilidade técnica. No início do século XX Feira de Santana experimentou uma robusta expansão urbana. Além do prédio da