Logo ali na esquina há uma árvore. Julgo que seja espécime catingueira: o tronco delgado, os galhos espinhosos, a copa baixa, tudo sinaliza para uma dessas plantas nativas dos sertões. Nos últimos dias desabrocharam flores: pequenas, frágeis, efêmeras. Até a cor – um violáceo esbranquiçado – lembra a sábia avareza da caatinga. A copa desta árvore misteriosa, pelo que noto, abriga uma planta que se ramifica prodigiosamente. Leigo, presumo que seja uma espécie de parasita.
A
sobreposição das duas produz um vivo contrate: a sertaneja, com sua copa
discreta, de sombra frágil, cujas flores despontam nas extremidades dos galhos;
e a outra, com a folhagem miúda, mas prolífica, sustentando-se sobre a copa,
projetando-se sobre o calçamento de pedras azuladas. Desconfio que seja uma
espécie de erve-de-passarinho.
Pois
hoje (09) esta árvore misteriosa foi alvo de uma peleja que envolveu um bando
de anuns e dispersos – mas aguerridos – bem-te-vis. Tudo sob a luz de chumbo do
fim da manhã, já que nuvens encardidas encobriam boa parte do céu feirense.
Acompanhei atentamente parte da batalha. No começo da tarde, os anuns
desapareceram. Semana passada o bando esteve na mesma árvore e, sob a chuva
forte que caiu naquela tarde, foram embora.
Conheço
os anuns desde minha infância remota. É uma ave que não tem a graça e a
elegância comuns às ágeis aves urbanas. O canto – um grito aflito – também não
encanta. Mas, vendo-os, fui buscar, na memória, o fio perdido da infância. Eram
cerca de nove. Contava-os e recontava-os e, numa rápida pesquisa na Internet,
descobri que vivem em bandos que variam entre sete e vinte componentes.
“Anu”
ou “anum” era a nomenclatura comum nos meus tempos de menino. Descobri o nome
científico – Crotophaga ani – e o
nome popular, anum-preto. É quase o mesmo da minha infância no Sobradinho. A
ave é muito mais comum do que imaginava: pode ser encontrada da Flórida à
Argentina.
Mas
e a briga com os bem-te-vis? Aquela árvore escassa – presumo – deve abrigar
ninhos, é o lar desta ave pequena que acorda o feirense com seu trinado alegre.
E aí aparecem os anuns e se apossam dos galhos. Saltavam desajeitados – a ave
não é lá muito afeita ao voo – nos galhos, no calçamento e, quando algum
pedestre surgia, iam refugiar-se sobre um muro. E os bem-te-vis em volta,
aflitos, sem um sentimento de bando para ajudá-los a organizar a expulsão.
Às
vezes, um bem-te-vi punha para longe, num voo desabalado, um anum que se desgarrava
do bando. Mas esses gestos heroicos eram raros, os anuns não se dispersavam. E
os bem-te-vis em volta, avexados, saltando das palmeiras-imperiais para os fios
de eletricidade. Qual foi o desfecho do entrevero? Os anuns, mais uma vez,
foram embora. Mas deixaram atrás de si dúvidas e mistério.
Será
que vão voltar? O que os levou àquela aventura? Pensei sobre desmatamento nas
cercanias, destruição do habitat –
esses crimes contra a natureza que se cometem nas cidades –, algo que tenha
desalojado as aves, lançando-as naquele conflito. Voltava à janela nos
intervalos do trabalho, as reflexões faiscando. Estenderam-se até o fim da
tarde, quando o sol mergulhou detrás de uma parede imensa, azulada, de nuvens,
sob a trilha sonora das cigarras.
História
miúda, deve pensar o leitor, com razão. Não tenho dúvida. Mas essas aparentes
insignificâncias da natureza nos afastam das telas dos aparelhos eletrônicos.
Longe delas, nos afastamos também dos horrores da pandemia, do esgoto da
extrema-direita que regurgita salpicando o Brasil com suas imundícies, das
saudades da rotina que se tinha noutros tempos e, que agora, parece muito
distante...
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