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O Coronel é uma instituição latino-americana



Dizem os estudiosos, gente metódica do meio acadêmico, que o Coronelismo acabou; Que se trata de fenômeno histórico, esgotado quando Getúlio Vargas triunfou com sua revolução, lá em 1930, sepultando a República Velha. Bobagem: mais que uma categoria ou um elemento de análise sociológica, o Coronelismo é um estado de espírito, uma forma de ser, uma visão particular sobre o mundo e a sociedade. E persiste até os dias atuais, apesar de todos os esforços, infrutíferos, para considerá-lo sepultado.
O Coronel é uma figura pitoresca que não floresce num lugar determinado do Brasil: simbiótico, ele encarna todas as metamorfoses necessárias, mostrando-se perfeitamente ajustado às mais distintas regiões do País. É como o camaleão, cuja tonalidade da pele encarna as características do ambiente em torno. E, faça-se justiça, é figura continental: vê-se espécimes semelhantes espalhadas pela América Latina, emergindo dos fundos de província com seu bigode indefectível, com seu chapéu panamá, com sua retórica beligerante.
Vá lá que, hoje, os espaços de atuação dos Coronéis minguam, relegando-os, aos poucos, às municipalidades enxutas de população, aos rincões distantes, àqueles pedaços de Brasil onde as instituições ainda inspiram respeito e – mais do que elas – as figuras dos Coronéis, já sem os rebenques, mas muitas vezes ainda calçados de botas e, sobretudo, com aquele tom de voz calculadamente intimidador.
Expurgados das metrópoles, dos centros urbanos mais modernos, acomodam-se aos teatros políticos mais modestos, àquelas pequenas cidades onde chamam o eleitor pelo nome, onde sua fortuna é reconhecida e admirada. Tudo bem que estejam em extinção: mas extintos, relegados aos compêndios de História, ainda não, é opinião presunçosa.

A essas alturas, curioso, o leitor mais exigente deve estar cobrando uma caracterização mais clara, até mesmo um conceito preciso sobre essa figura controversa e, ao mesmo tempo, pouco definida. Pois bem: elencaremos um conjunto de características que, embora passe ao largo do conceito preciso, fruto de laborioso empenho acadêmico, vai aproximar o leitor dessa figura que transita do mostruário histórico à rotina diária das repartições públicas, das robustas análises sociológicas ao eito contemporâneo das fazendas.  
Comecemos pela função: Coronel é chefe político. Necessariamente. Essencialmente. Questões relativas à política local, apoio às lideranças subnacionais – estados ou províncias, já que analisamos uma personagem que transcende fronteiras – e até nacionais, acordos eleitorais, tudo passa por ele. Esteja ele ou não no exercício do poder direto, lá na prefeitura, ou via seus apadrinhados, é ele quem emite a palavra final. E essa costuma ser lei, pelo menos para aqueles que o cercam.
A condição de chefe político rende respeito e deferência: os clubes de serviço, as ordens maçônicas, as instituições beneméritas, todos lhe rendem homenagem, reservam-lhe postos destacados em sua hierarquia, consultam-no em suas decisões. Nas solenidades nas quais pululam autoridades engravatadas, que recendem importância e distinção, seu discurso é ansiosamente aguardado e o espaço que lhe granjeiam é, sempre, o mais nobre. Pouco em função do conteúdo, mas muito em virtude de sua condição, como se vê.
É desnecessário dizer o quanto é respeitado e temido na prefeitura, entre os barnabés. Um sorriso ao final de uma piada sem graça é a senha para gargalhadas entusiasmadas entre os que o cercam; um rosnado ou um olhar atravessado provocam calafrios; uma ordem impulsiona uma reação muscular quase instantânea para atendê-lo; e um elogio, um gracejo, um gesto de estima do Coronel elevam o conceito do beneficiário entre seus pares, num misto de admiração e inveja.
 O locus para enxergar o Coronel em sua plenitude, no entanto, não é entre seus pares respeitáveis nas incontáveis solenidades que se inventam ao longo do ano. Tampouco entre a burocracia das repartições, que o teme e, invariavelmente, costuma lhe dever favores. Menos ainda entre os infelizes que lhe servem em suas fazendas, já que o Coronel, em essência, está vinculado ao setor rural. Mesmo que, eventualmente, não tenha uma origem rural, compra terra, porque isso confere maior respeitabilidade.
O Coronel é Coronel em sua plenitude é no contato com o povo, nas esquinas, nas calçadas, nas vielas sem pavimentação nem saneamento da periferia, nas portas dos casebres da zona rural, nas feiras-livres semanais. Nas missas ou nos cultos, nos torneios de futebol que rendem troféus e medalhas, nas festas religiosas ou folclóricas, nos churrascos e celebrações dos cabos eleitorais exercita seu papel com indizível prazer. Conta piadas, narra estórias, relembra causos, desperta simpatias.
Diante de uma casa pobre recomenda juízo à infeliz que vaqueja os filhos pequenos e descalços; adiante, rememora histórias antigas com uma idosa arqueada; acolá promete, sisudo, analisar o pedido de trabalho de um desgraçado de olhos baixos; numa esquina, relata feitos esportivos à turma do futebol, que finge acreditar; mais adiante, entabula conversa com o dono do mercadinho que marcha com o Coronel em todas as eleições.
O apreço à imagem de tocador de obras marca o clímax da encenação: o que está pronto ele examina com escrúpulo minucioso: quando é calçamento pergunta se a poeira e a lama cessaram; praça ele cobra conservação, em tom intimidador, aos azarados que eventualmente estejam por lá durante a inspeção; nas visitas às escolas recomenda às crianças que estudem, senão viram vagabundos, malandros, desocupados, acabam-se na cachaça, largados pelas esquinas, num ócio vergonhoso.
Coronel é sinônimo de respeito às leis, às instituições, à família, à pátria e, sobretudo, à propriedade. Em suma, é um conservador. Boa parte desse respeito, convenha-se, é para consumo externo: contornam-se as leis quando é necessário; as instituições servem para viabilizar interesses, às vezes, inconfessáveis; a família comporta amantes variadas e, em alguns casos, um filho bastardo porque o Coronel precisa referendar sua macheza; a pátria é importante porque, nela, acomodam-se o conjunto dos interesses dos Coronéis, cuja gula exige fronteiras amplas. Propriedade é conceito mais estável, embora flexível quando se trata de cofres públicos.
Essa disposição conservadora, no entanto, costuma ser flexibilizada nos períodos eleitorais. É quando o Coronel abraça a democracia, embala-a ternamente, alça-a à condição de valor político supremo. Isso era dispensável no passado, mas, com todas essas prosopopeias modernas na rua, ele vê-se obrigado a essas concessões no plano retórico. Mas só no plano retórico: nos gabinetes, nos conchavos, nos bastidores, prevalece a hierarquia verticalizada, a ordem incontestável, o tom duro de voz, o olhar intimidador.
A essas alturas o leitor, cético, dirá que o Coronel confunde-se com a figura do político em exercício de mandato. E, implacável, dirá que, sendo assim, o Coronel é figura universal, que também pisa o solo civilizado dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. Não se trata, portanto, de uma glória exclusivamente latino-americana, como os Andes, os pampas ou a caatinga. Sendo assim, a figura exposta exige definição mais ajustada e recomenda, por fim, que o cronista estude mais, aprofunde suas reflexões e que extraia uma caracterização mais particular.
Reconheço que, aqui ou ali, as rotinas, a hierarquia, a deferência e as honrarias coincidem. Mas refuto qualquer pretensão acadêmica: a condição de Coronel aqui exposta transcende o mundo material e as convenções sociais. Eleva-se ao nível da subjetividade e revela, na essência, um jeito de ser, de enxergar o mundo e, sobretudo, a si mesmo. É condição com fumos de realeza, já que se conta com um trono imaginário à disposição; e flerta com uma espécie de santidade profana, de aura mística, que os métodos científicos convencionais não conseguem captar.

   

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