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Hábitos urbanos mudaram celebrações juninas



Os festejos juninos costumam figurar no imaginário do nordestino como um período de fartura. Uma trégua breve em meio às constantes agruras climáticas que afligem a região. Daí, provavelmente, derivou inicialmente a alegria contagiante do período, associada à ampla variedade de quitutes e bebidas consumidas nesses dias de festa e, também, à profusão de fogos que fazem a alegria de adultos e crianças. Isso, claro, ocorre no contexto da celebração cristã. Junho, aliás, é prenhe em homenagens a alguns dos mais populares santos católicos.
Noutros tempos, em anos bons, as chuvas caíam até o dia de São José, em 19 de março, assegurando colheita farta em meados de junho, quando se comemora o São João. Com todos os desarranjos climáticos em curso no planeta – com evidentes impactos sobre a frágil caatinga nordestina – essa tradição, em parte, se desfez porque as precipitações, em alguma medida, se tornaram erráticas.
Não foi apenas o regime climático que provocou mudanças nos festejos juninos. Antigamente, gigantescas fogueiras agregavam famílias, que compartilhavam pratos, o licor caseiro comum no período, as alegrias da noite iluminada pelo espocar dos fogos. As crianças, álacres, saltavam fogueiras, os adultos improvisavam quadrilhas. Embalando tudo, o autêntico forró nordestino, com seu retinir contagiante.
A redução da população rural foi fragilizando essas tradições: os migrantes foram se ajustando às idiossincrasias da vida urbana, adquirindo novos hábitos e esquecendo os antigos, muitos deles incompatíveis com as limitações impostas pela rotina da cidade. Nos grandes centros urbanos o fenômeno foi mais intenso, mas alcançou com o mesmo vigor cidades do porte da Feira de Santana nas últimas décadas.

Festa Tradicional

Há pouco mais de 30 anos as fogueiras pontuavam as noites dedicadas a São João. Uma densa fumaça cobria as ruas; aqui e ali casais arrastavam os pés, muita gente conversava animada pelo licor e pelo forró que rádios e radiolas amplificavam; os fogos despertavam amplo entusiasmo, sobretudo entre as crianças. A festa era, essencialmente, comunitária, mobilizando famílias e vizinhos próximos. Muitos aguardavam o São João com ansiosa expectativa.
Nos anos de Copa do Mundo, a alegria era redobrada. Vivia-se, ainda, o êxtase do futebol brasileiro como o melhor do planeta, como aquele que produzia craques em profusão, que encantava plateias ao redor do mundo. Quando a Seleção Brasileira era eliminada antes da festa de São João, no entanto, o ânimo decaía. Muitos afogavam a tristeza do esporte em generosas doses de licor.
A aspereza da vida urbana diluiu essa felicidade singela em algumas décadas. Os forrós familiares foram substituídos pelas grandes festas em palcos gigantescos, que atraem milhares de visitantes, para alegria dos prefeitos que pagam cachês generosos. O repertório tradicional, com Luiz Gonzaga e o Trio Nordestino, foi substituído por incontáveis grupos de qualidade duvidosa, que com o tempo descaracterizaram o forró. Até pagodeiro figura como atração em festa junina hoje.
 Mas, apesar desses percalços, algumas tradições permanecem. Na Feira de Santana, o movimento foi mais intenso essa semana, com muita gente comprando o amendoim, o milho e a laranja no Centro de Abastecimento e nas feiras de bairro. Mesmo com a crise, não faltou quem investisse em fogos e no licor tradicional, sobretudo o da afamada produção da vizinha Cachoeira. Confirmando a tendência recente, é provável que as ruas da cidade se esvaziem nessas noites, dando à festa um ar melancólico, com balões passando errantes, silenciosamente, como diria o poeta Manuel Bandeira.

   

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