Vá lá que, com a idade e o passar do tempo, a mente
costuma adoçar o passado, arredondá-lo, aparar suas arestas, emprestar-lhe um
ar mais favorável. Esse exercício de reedição do pretérito, impregnado de
subjetividade, costuma ser pouco honesto: esquecemos os pequenos e os grandes
aborrecimentos, tangendo os inconvenientes para os escaninhos do cérebro, de
onde raramente permitimos que emerjam.
Aquilo
que foi bom, por sua vez, a princípio é exaltado, tratado com terna candura
pela mente naquele curto intervalo de tempo posterior. Depois, à medida que o
tempo amplia as lacunas na memória, nos dedicamos ao frenético esforço de
reelaboração do pretérito, atribuindo-lhe cores mais vivas e mais favoráveis, recompondo
o que foi esquecido, ampliando aspectos agradáveis, embriagando-o com o
espírito saudosista do presente.
Noutras palavras, reeditamos o passado conforme nossa
perspectiva presente. Evidentemente, no fantasioso universo mental, costumamos
recorrer às versões que nos sejam mais favoráveis: o que é ruim, vai para
aqueles escaninhos mencionados acima, dos quais só ressurgem quando avivados
por terceiros. Essencialmente narcísico, esse exercício é algo mais profundo
que vitaminar a própria autoestima: é matéria-prima para a construção da nossa
identidade e, até, recurso para assegurar a própria existência.
Esse
exercício já foi mais indispensável no passado: hoje, a partir da disseminação
avassaladora das redes sociais, já estamos mais próximos de editar o próprio
presente. Basta, para tanto, uma conta numa rede social e um equipamento
eletrônico sempre à mão, para registrar a torrente incessante de momentos
agradáveis: o prato colorido no restaurante fino, o final de semana na praia,
as férias nalgum país estrangeiro, a confraternização com os amigos, os gestos
cotidianos e cativantes das crianças e a graça dos animais domésticos.
Filosofia
Essas possibilidades, todavia, são privilégios das
gerações recentes: os jovens do passado, aqueles que chegaram à era da Internet
já inteiramente imersos na vida adulta, dispõem de poucos – para não dizer
nenhum – recursos do gênero. Daí tome aquele exercício de repaginação do
passado, sem a opção curtir, sem efeitos especiais nas fotografias – sobretudo
as afamadas selfies – e, também, sem
a ansiedade e a expectativa pelos comentários.
O passado, conforme já dito, é coisa que habita o
universo da subjetividade; não raramente, flerta com o imponderável, o
inverossímil, o fantástico. Disso resulta certa desconfiança sobre os cronistas
de antanho: estarão sendo minimamente verídicos? Ou sentem que seu tempo passou
e se vingam da juventude atual brandindo episódios agradáveis que essa jamais
viverá? A resposta, logicamente, começa pela identificação de quem é o cronista.
Transitando pelo
cabo etário da boa esperança – meia vida vivida – arrisco-me a buscar resposta
na mediação filosófica: as épocas, necessariamente, são diferentes; aquilo que
é diferente é, por natureza, difícil – ou impossível, no caso em questão – de
ser comparado; virtudes e defeitos são observáveis em todas as épocas e
dependem, fundamentalmente, do observador e da perspectiva a partir da qual
observa; logo, não há muita consistência em comparações do gênero. Mas elas
prosseguirão vida afora, em função da renitente vocação humana de repisar
questões dessa natureza.
Olhos D’Água
Toda
essa longa digressão foi para mencionar, no rodapé do artigo, os antigos olhos
d’água da Feira de Santana. É que lembrei, dia desses, da minha infância ali na
rua da Palma, no Sobradinho, nos anos 1980. Lá, no fim da rua, havia um olho
d’água que me fascinava: o milagre da água brotando da terra espantou o menino
que eu era à época, incapaz de explicar fenômeno tão fantástico. As sensações
que aquela visão despertou permanecem, ainda hoje, muito vívidas.
Aquele olho d’água originava todo um ecossistema, com
plantas, insetos, pássaros e pequenos anfíbios, como as rãs que coaxavam
escandalosas na água deliciosamente fria. À época, tudo a uns duzentos metros
de casa. As ruas eram mais silenciosas e o céu, mais estrelado: não havia
tantos carros, nem a orgia das luzes urbanas era tão intensa. Talvez a infância
fosse mais prazerosa que nos dias atuais.
Naquela época, todavia, não existia Internet, nem redes
sociais, nem fóruns de discussão para catarses coletivas. Esse texto, que
escorre fácil pelo teclado do computador, naqueles tempos seria extraído a
fórceps de uma Olivetti qualquer. E,
certamente não flanaria, vadio, em formato digital à procura de leitores
escassos...
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