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A culpa da crise é dos barnabés

                            
             Talentoso redator e cronista carismático, Rubem Braga escreveu cerca de 15 mil crônicas numa extensa e prolífica carreira jornalística.  Testemunhou a Segunda Guerra, exaltou o mar, o céu, a lua e as estrelas, injetou lirismo no cotidiano, divagou sobre o amor e as mulheres, contou inúmeros causos e encantou seus leitores rememorando a infância em Cachoeiro do Itapemirim. E, num texto inusitado, viu-se às voltas buscando confortar uma moça que, aprovada em concurso público, jamais foi convocada para assumir o cargo e exercer suas funções.
                Episódio triste: horas de estudos intensos, embalados por sonhos e expectativas, a tensão e o medo acossando-a para, adiante, experimentar o êxtase da aprovação. Por fim, o triste desfecho: jamais foi convocada. Numa carta, pedia conselho ou orientação. Pesaroso, o velho Braga constatou que questões do gênero resolviam-se com o “pistolão”, a tradicional cartinha do político amigo.
                Reza a narrativa oficial da administração pública brasileira que, lá por meados dos anos 1930, Getúlio Vargas tentou endireitar a coisa, instituindo concurso, exigindo profissionalismo. Acabar-se-ia, então, o habitual apadrinhamento legado pelo Império, gulosamente apropriado pela oligarquia da República Velha. Como sempre, discurso e prática enveredaram por trilhas divergentes: admitiam-se alguns por mérito e seleção pública; a imensa maioria, no entanto, chegava selecionada a dedo, indicada pelos amigos.
                Décadas depois, no alvorecer da chamada Nova República – meados dos anos 1980 em diante – o câncer do apadrinhamento ainda carcomia a administração pública. Para erradicá-lo, a Carta Magna de 1988 exibia intenções drásticas: admissão de servidor público, só mediante concurso público. Como todos sabem, a deplorável “criatividade” dos políticos brasileiros contornou, matreira, o embaraço. E a coisa se arrasta, imutável, até os dias atuais.
                É assim que, hoje, coexistem duas categorias de servidores públicos: aqueles admitidos mediante concurso; e uma fauna heterogênea que integra o staff dos cargos de confiança e os penduricalhos administrativos que foram forjados ao longo dos anos, como o Reda, o PST e outras siglas polêmicas. Embora não se aplique a todos os casos, o recurso sempre serviu para pendurar na administração pública a máquina fisiológica que gravita em torno das campanhas eleitorais.

Barnabés

Na média, quem ostenta “pistolão” transita pelos gabinetes acarpetados das chefias, emite opiniões austeras em reuniões solenes, exerce a prerrogativa da “representação” em incontáveis solenidades e, quase sempre, é agraciado com mimos que tornam menos insossa a vida nas repartições: carro oficial na porta de casa, diárias, viagens, recepções e a impagável intimidade do poder.
Os barnabés – aqueles servidores aprovados mediante concurso – costumam figurar nesses ambientes como estorvos: preguiçosos, pusilânimes, passivos, omissos, sem iniciativa e, quando as crises econômicas arrebentam, como agora, são premiados com parte da culpa pelo descalabro econômico. Nessas ocasiões, figuram como protagonistas das medidas de austeridade.
Assim, desde o ano passado foram convocados para arcar com o ônus da crise: enfáticos, até abespinhados, governantes descartam reajustes salariais; os barnabés mais desafortunados amargam expressivos atrasos salariais ou pagamentos parcelados; e, de quebra, ouvem as indecorosas insinuações que são corresponsáveis pela recessão, embora a culpa caiba inteiramente, nesse caso, a quem emergiu em êxtase das urnas. Tudo sob o silêncio cúmplice dos pelegos dos sindicatos, eles próprios beneficiários de inúmeros mimos.
Tenebrosas transações, a cada eleição, contribuíram para a formatação atual das instituições de Estado. Na média, é o incessante fluxo de apadrinhados e novos aliados que rege a criação de cargos pendurados em novos ministérios e secretarias. Nada muito republicano, a exemplo do que ocorria na República Velha. É natural, portanto, que a artilharia dos governantes de plantão foque, preferencialmente, os barnabés, já que nos próprios aliados não se pode atirar.

Sobre reforma administrativa que enxugue a máquina pública pejada de parasitas não se ouve nenhuma palavra. Afinal, todos integram as concertações eleitorais e, ao final das contas, julga-se que têm direito a uma sinecura qualquer. Exatamente como Rubem Braga constatou, lastimoso, sem uma palavra de conforto para a jovem que prestara concurso e que se vira ludibriada... 

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