Pular para o conteúdo principal

A filosofia do encarceramento




“Prenderam um colega de vocês. Um rapaz que entrega o jornal”. O aviso foi dado pelo próprio carcereiro, numa manhã de 1997, no Complexo Policial Investigador Bandeira, à equipe de reportagem do extinto jornal Feira Hoje. Instantes antes o jornaleiro descera algemado do compartimento da viatura. Fomos à antessala da carceragem – suja, escura, malcheirosa – entender o que se passava e verificar que crime o rapaz cometera. Lá, já se submetia ao procedimento padrão: apontava nome completo e endereço, enquanto se despia, pois os presos eram confinados nas celas trajando apenas cueca.
A circunstância da prisão era pitoresca: flagraram-no com um poodle sob o braço. O cão, segundo denunciaram os donos, fora surrupiado numa casa na qual o rapaz acabara de entregar o jornal. Momentos após uma ligação para a Polícia Militar, o jornaleiro foi detido numa rua próxima. Assim narrou o próprio rapaz.
Naquela ocasião o que me surpreendeu foi a reação do carcereiro, calejado agente da Polícia Civil: com uma expressão de pesar, lamentava a ingenuidade do jornaleiro. Mais: ele próprio se espantava com a gratuidade do confinamento. “Tudo no Brasil acaba em cadeia, desde que o acusado seja pobre”, filosofou alguém naquela manhã. O mais espantoso é que quem mais se espantava era o próprio guardião do cárcere.
Desde então o Brasil só fez aprofundar a tendência. Nos últimos 15 anos, o País é o que mais encarcerou gente: dados do próprio Ministério da Justiça atestam que, em 20 anos, a população carcerária aumentou 400%. A população do País, meros 36%. Todavia, nas tevês, o discurso massivo contra a impunidade transmite a sensação que pouca gente vai presa no Brasil, o que não é verdade.
Essa elevação no volume de encarceramentos levou a situações surreais. Dados do Centro Internacional de Estudos Penitenciários, localizado na Inglaterra, indicam que a média mundial de presos é de 144 para cada 100 mil habitantes. No Brasil, o índice é simplesmente o dobro: 300 presos para cada cem mil brasileiros. Os números refletem a lógica do encarceramento como única estratégia punitiva no País.

 Feira de Santana

Os números na Feira de Santana são ainda mais dramáticos. A Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP) divulgou, no último dia 14 de abril, que o Conjunto Penal abrigava precisamente 1.237 presos. Vá lá que parte dos presos não são do município e vieram transferidos de delegacias da região. Mas note-se também que não entram na contabilidade os presos custodiados nos xadrezes do Complexo Policial. Desconsideremos, portanto, esses fatores.
Pois bem, a conta é simples: dividindo-se o número de presos por aproximadamente a população feirense – 600 mil pessoas, conforme o IBGE – chega-se a exatos 206,16 presos por cem mil habitantes. Bastante acima da média da população carcerária de outras nações, como se vê. O grande drama, porém, não é a quantidade de presos, mas a qualidade das prisões brasileiras.
Os mesmos dados da SEAP atestam que, na Feira de Santana, existem 644 vagas no Conjunto Penal. E que, na data do levantamento, 593 presos estavam na condição de excedentes. São, portanto, quase dois presos para cada espaço exíguo reservado a um interno. Quando se pensa no grau de deterioração das  prisões, nos aproximamos da real dimensão do drama.
Muitos dos que mofam nas delegacias e presídios brasileiros – e da Feira de Santana – foram encarcerados por pequenos delitos e, sem dinheiro ou amigos influentes, aguardam algum gesto magnânimo da Justiça. Esses infelizes, quando transferidos para as penitenciárias, ficam expostos à violência dos criminosos mais perigosos, já que há muito tempo o Estado abdicou de exercer seu papel dentro dos cárceres.
Todos os dias circulam notícias de gente presa porque furtou biscoito, pão, shampoo ou outra mercadoria qualquer. Normalmente, em países civilizados, para esses infelizes, a ressocialização se sobrepõe à punição. Todavia, no Brasil, que hoje atravessa o maior surto de conservadorismo desde a sua recente redemocratização, não se permitem concessões: o destino é o cárcere, mesmo que o “criminoso” carregue um poodle de imaculado pelo branco debaixo do braço...




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Parlamento não digere a democracia virtual

A tentativa do Congresso Nacional de cercear a liberdade de opinião através da Internet é ao mesmo tempo preocupante e alvissareira. Preocupante por motivos óbvios: trata-se de mais uma ingerência – ou tentativa – da classe política de cercear a liberdade de opinião que a Constituição de 1988 prevê e que, até recentemente, era exercida apenas pelos poucos “privilegiados” que tinham acesso aos meios de comunicação convencionais, como jornais impressos, emissoras de rádio e televisão. Por outro lado, é alvissareira por dois motivos: primeiro porque o acesso e o uso da Internet como meio de comunicação no Brasil vem se difundindo, alcançando dezenas de milhões de brasileiros que integram o universo de “incluídos digitais”. Segundo, porque a expansão já causa imensa preocupação na Câmara e no Senado, onde se tenta forjar amarras inúteis no longo prazo. Semana passada a ingerência e a incompreensão do que representa o fenômeno da Internet eram visíveis através das imagens da TV Senado:

Cultura e História no Mercado de Arte Popular

                                Um dos espaços mais relevantes da história da Feira de Santana é o chamado Mercado de Arte Popular , o MAP. Às vésperas de completar 100 anos – foi inaugurado formalmente em 27 de março de 1915 – o entreposto foi se tornando uma necessidade ainda no século XIX, mas só começou a sair do papel de fato em 1906, quando a Câmara Municipal aprovou o empréstimo de 100 contos de réis que deveria custear sua construção.   Atualmente, o MAP passa por mais uma reforma que, conforme previsão da prefeitura, deverá ser concluída nos próximos meses.                 Antes mesmo da proclamação da República, em 1889, já se discutia na Feira de Santana a necessidade de construção de um entreposto comercial que pudesse abrigar a afamada feira-livre que mobilizava comerciantes e consumidores da região. Isso na época em que não existia a figura do chefe do Executivo, quando as questões administrativas eram resolvidas e encaminhadas pela Câmara Municipal.           

“Um dia de domingo” na tarde de sábado

  Foi num final de tarde de sábado. Aquela escuridão azulada, típica do entardecer, já se irradiava pelo céu de nuvens acinzentadas. No Cruzeiro, as primeiras sombras envolviam as árvores esguias, o casario acanhado, os pedestres vivazes, os automóveis que avançavam pelas cercanias. No bar antigo – era escuro, piso áspero, paredes descoradas, mesas e cadeiras plásticas – a clientela espalhava-se pelas mesas, litrinhos e litrões esvaziando-se com regularidade. Foi quando o aparelho de som lançou a canção inesperada: “ ... Eu preciso te falar, Te encontrar de qualquer jeito Pra sentar e conversar, Depois andar de encontro ao vento”. Na mesa da calçada, um sujeito de camiseta regata e bermuda de surfista suspendeu a ruidosa conversa, esticou as pernas, sacudiu os pés enfiados numa sandália de dedo. Os olhos percorriam as árvores, a torre da igreja do outro lado da praça, os táxis estacionados. No que pensava? Difícil descobrir. Mas contraiu o rosto numa careta breve, uma express