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Graciliano Ramos: Orgulho e Esperança

Na próxima quinta-feira, 20 de março, completa-se meio século do falecimento de uma das mais expressivas personalidades da literatura brasileira: o escritor alagoano Graciliano Ramos. Nascido em Quebrangulo, a 27 de outubro de 1892, o “Velho Graça”, como ficou conhecido nos meios literários, estreou tardiamente na literatura, com Caetés (1933). Nos cinco anos seguintes, firmou reputação com o lançamento de três outros romances que o alçaram à condição de maior expoentes da chamada “Geração de 30”, integrada por escritores mais afeitos à temática regional: São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas Secas (1938).

Sua inserção na corrente regionalista, todavia, representa uma classificação superficial: com seus personagens rústicos, Graciliano freqüentemente transpõe os sertões ignaros e as insignificâncias que preocupam sua fauna, para enveredar em questões mais abstratas que afligem toda a humanidade. E as personagens, aparentemente medíocres, veem-se imersas em turbilhões existenciais, ainda que presas à rispidez da caatinga ou ao provincianismo de Maceió à época.

São os casos do enciumado Paulo Honório, de São Bernardo, do atormentado Luís da Silva de Angústia e do primitivo Fabiano, de Vidas Secas. Mais que ficção, as personagens são fragmentos do Graciliano Ramos jornalista, político, comerciante e socialista. E que mesmo socialista, conservou sua obra a salvo da panfletagem verborrágica tão corriqueira em muitos escritores no período stalinista, num não tão comum exemplo de integridade intelectual.


Trajetória


Filho de pai comerciante, Graciliano Ramos viveu em Buíque (PE) e Viçosa (AL), antes de transferir-se para Maceió, em 1905, para cursar um colégio interno. Cinco anos depois, mudou-se para Palmeira dos Índios (AL), onde trabalharia no estabelecimento comercial paterno até 1915. Naquele ano transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como revisor em jornais. Retornou a Palmeira dos Índios no mesmo ano, casando-se e abrindo ele também um estabelecimento comercial.

À época o “Velho Graça” escrevia crônicas, que publicava em jornais de tiragem limitada. Sua vida começou a mudar em 1928, quando se elegeu prefeito de Palmeira dos Índios. Sua gestão, austera com os recursos públicos, foi descrita em dois relatórios, famosos pelo estilo literário, e encaminhados ao governador do Estado. Os textos circularam pelo Rio de Janeiro e o poeta e editor Augusto Frederico Schmidt apostou que o prefeito tinha um romance guardado: este livro era Caetés, que marcou sua estréia na literatura.

Antes da estréia, a vida de Graciliano foi marcada por imprevistos: renunciou à prefeitura em 1930, sendo nomeado diretor da Imprensa Oficial de Alagoas; no ano seguinte, nova renúncia e retorno a Palmeira dos Índios, onde funda uma escola nos fundos de uma igreja. Em 1933, nova nomeação, desta vez para a direção da Instrução Pública de Alagoas. Em meio à recém iniciada carreira literária, novas turbulências aconteceram.


Memórias do Cárcere


Em março de 1936, Graciliano Ramos foi preso em Maceió, acusado de atividade subversiva: lançaram-se suspeitas sobre supostas atividades comunistas do escritor, mas a causa da prisão certamente foi sua carreira literária, no período pouco tolerante que precedeu a Ditadura Vargas. De Maceió foi transferido para o Recife e, de lá, para o Rio de Janeiro, permanecendo encarcerado por 11 meses. Angústia foi lançado durante sua prisão, angariando amplos elogios. Mestre Graciliano, porém, foi voz destoante: considerou o romance medíocre, manifestando a necessidade de reduzi-lo em pelo menos uma “terça parte”.

A prisão de Graciliano Ramos foi a maior contribuição que Getúlio Vargas deu à literatura brasileira, ainda que involuntariamente: os cárceres abjetos, o convívio com criminosos comuns (embora o convívio predominante tenha se dado com presos políticos) e a ausência de uma acusação formal forjaram, ainda que à custa de sofrimentos que encurtaram a vida do escritor, os dois imortais volumes de Memórias do Cárcere, que veio à luz em 1954.

O livro começou a ser escrito em 1946 e não foi concluído: faltou o derradeiro capítulo. Nele, o escritor não se restringe a um relato pessoal. Mais que isto, Memórias do Cárcere é o testemunho de uma época nefasta da história brasileira e em suas páginas as personalidades e os fatos são expostos como o autor os enxergava: não houve concessões sequer aos quadros do PCB, ainda que o livro tenha sido escrito no período de mais ativa militância do autor.

Implacável

Graciliano Ramos, antes de sua morte prematura, escreveu ainda dois outros importantes livros: Infância (1945) e Viagem (1954), ambos relatos autobiográficos. No primeiro, o autor relembra seus primeiros anos de vida e fixa as principais personagens da época. No segundo registra a viagem feita à União Soviética, a convite da associação dos escritores daquele país. Embora naqueles anos se exaltassem as maravilhas do stalinismo, o escritor optou por um relato sóbrio, comedido em elogios.

Quando Graciliano Ramos despontou para a literatura, militavam na escrita ficcional Raquel de Queirós, José Lins do Rêgo, Jorge Amado, Érico Veríssimo e Amando Fontes, entre outros. Esta profusão de talentos, rara na história da literatura brasileira, não impediu, no entanto, que o escritor alagoano alcançasse indiscutível destaque, ainda naquele período.

Parte do seu sucesso, sem dúvida, deve-se à extrema rigidez com que julgava o próprio trabalho. Nenhum dos livros que escreveu mereceu a própria simpatia: já no fim da vida, classificou a todos como “chinfrins”. Graciliano Ramos perseguiu com obstinação o estilo direto e de raros adjetivos, dispostos em períodos elegantes. Egresso do sertão remoto, mourejou na periferia literária por largos anos (inclusive vivendo uma experiência frustrada de revisor em jornais do Rio de Janeiro), antes de alcançar o reconhecimento que lhe era devido.

Nos dias atuais, em que o mercenarismo literário avulta nas vitrines das livrarias, o sertanejo de Quebrangulo é orgulho e esperança para a literatura brasileira.


Texto originalmente publicado no jornal Tribuna Feirense, em março de 2003

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