– ... está morrendo muito idoso com a Covid-19...
–
É bom. Assim abre lugar pros mais jovens. Renova...
O
diálogo surreal ocorreu num boteco na Zona Sul paulistana. Foi num final de
tarde de verão, sob uma luz tristíssima, cinzenta. Na orla do céu, o clarão dos
relâmpagos anunciava uma trovoada que não chegou. Na rua, os faróis dos
automóveis feriam a semiobscuridade do lusco-fusco.
O
primeiro interlocutor era idoso – escassos fios alvos emolduravam a cabeça
calva – e esvaziava uma garrafa de cerveja. Provavelmente a saideira: o outro,
jovem, empilhava mesas, apressado em sua tarefa. Lá, dentro, uma tabuleta
indicava os pratos-feitos servidos no botequim. Um cheiro denso de gordura
impregnava o ambiente, irradiava-se para a calçada.
Será
que a frase cruel era só para afugentar o cliente retardatário? Impossível
saber. Mas o desprezo pela vida, no Brasil, só surpreende os mais desatentos.
Talvez o sujeito absorvido por aquela tarefa mesquinha, sem futuro – deve
embolsar um salário irrisório – julgue que, matando os mais velhos, sobre mais
dinheiro para os mais jovens. Ou, quem sabe, almeje só uma vingança sórdida, gratuita,
já que vive uma vida sem expectativas.
O
mais desconcertante é que muita gente não despreza só a vida dos outros.
Afinal, o que pensa quem se entope de cloroquina e sai por aí, sem máscara e
sem receio das aglomerações? Devem atribuir pouco valor à própria existência. A
cena é muito comum na capital paulista. Lá, muitos se acotovelam,
desassombrados, em bares e festas. Contrariando o clichê habitual, não são só
os pobres com seus paredões
periféricos, mas também a classe média alta com suas festinhas privê.
Aqui
na Feira de Santana, pelo jeito, também não faltam destemidos. Será que também se
entopem de cloroquina e saem por aí julgando-se invulneráveis? Pode ser. Alguns
logradouros da cidade oferecem fartas amostras da fauna. É o caso da Rua de
Aurora e adjacências, com seu intenso comércio de autopeças e acessórios. Por
ali, poucos usam máscaras. Será que o afã de fazer dinheiro os distrai? Ou
julgam a pandemia modismo? São duas explicações plausíveis.
Não
é difícil traçar o perfil dos mais recalcitrantes. Muita gente jovem
arrisca-se, indiferente à Covid-19. Mas boa parte é de meia-idade, com baixa
instrução e ocupada em funções precárias. Trabalham sem máscara, mas também
conversam, aguardam clientes ou se deslocam sem maiores cuidados.
No
Centro de Abastecimento não é diferente. Feirantes e consumidores arriscam-se
como se não houvesse amanhã. Até o perfil é similar. Imagino que, pouco
escolarizada, essa gente enfrenta dificuldades para entender o que é um vírus e
as formas de transmissão. Para eles, é tudo misterioso, enigmático. Daí a
desconfiança que – não raro – é terreno fértil para as mais insanas teorias
conspiratórias.
O
desalentador é que o cenário vai se arrastar por muito tempo ainda.
Negacionista, o governo da morte não investiu em vacinas e a imunização da
população, ao que tudo indica, vai prosseguir a conta-gotas. Isso se a nova
cepa oriunda do Amazonas não ampliar a desgraça, o que muitos estudiosos já
cogitam.
O
fato é que 2021 vai ser mais um longo e angustiante ano para o brasileiro que
preza pela própria vida e se cuida. Os demais flertam com a morte. E os
acólitos de Jair Bolsonaro, o “mito”? Ah, esses permanecem em êxtase,
deleitando-se num mar de leite condensado...
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