Pular para o conteúdo principal

Sonho de uma noite de Micareta

              

A programação oficial da Micareta 2016, divulgada pela Prefeitura Municipal, mostra que essa vai ser uma das festas mais modestas dos últimos anos. Pelo que se percebe, boa parte das atrações previstas será patrocinada pela própria prefeitura. Os blocos privados, que nos anos anteriores eram responsáveis pela contratação das grandes atrações da música baiana, serão pouco generosos na festa que começa hoje: descontando uns poucos nomes desgastados, e outros tantos de qualidade duvidosa, haverá pouco apelo popular na avenida Presidente Dutra. É, sem dúvida, mais um sintoma da feroz crise econômica em andamento.
            O curioso é que, caso alguém resolvesse resgatar as micaretas irreverentes de outras épocas, com máscaras e fantasias, encontraria farta inspiração na crise política em curso no País. Só as máscaras já renderiam ampla galhofada: sem dúvida, Eduardo Cunha figuraria como grande homenageado; mas o elenco seria vasto: Dilma Rousseff, Michel Temer, Lula, Sérgio Moro, o japonês da Polícia Federal...
            O trágico espetáculo da votação do impeachment na Câmara dos Deputados, por exemplo, renderia inesgotável repertório: os trajeitos, as caras e bocas, a exaltação a Deus, à Família e à Propriedade, a iracunda condenação da corrupção – com requintes de cinismo e teatralidade – tudo seria mote para uma farra inesquecível, digna de figurar na memória das micaretas.
            As máscaras serviriam até para gestos pouco nobres, a exemplo de uma anônima troca de socos entre gangues de desafetos. Afinal, ensandecidos bondes de Cunhas, Temeres, Bolsonaros e Felicianos engalfinhando-se com Lulas, Rousseffes, Mercadantes e Cardozos divertiriam à larga, apesar dos prováveis hematomas, olhos roxos e narizes arrebentados.
            Essas individualidades retratadas nas máscaras, porém, diluem-se no cenário mais amplo das bancadas parlamentares, que poderiam reverter-se em inspiradores blocos micaretescos. Três deles nem exigiriam muita imaginação: os blocos da Bíblia, do Boi e da Bala, fieis réplicas das bancadas homônimas no Congresso Nacional. Alegorias e adereços também nem exigiriam lá grande criatividade.

            Blocos

         O bloco mais caricato é da Bíblia – ou do Dízimo, segundo profetizam alguns – e, além das tradicionais cópias das Sagradas Escrituras, paletós masculinos e coques em cabeleiras femininas compõem bem as personagens. Plaquetas prevendo imensas desgraças para quem não curtisse a Micareta seriam bem-vindas, emprestando seriedade bíblica ao convite à folia.
        Não faltaria munição ao bloco da Bala: irreverentes pistolas d’água na avenida, metaforicamente – pelo menos por enquanto –, abririam caminho para a revogação do estatuto do desarmamento. Sem ele, todos poderão resolver suas desavenças a bala, inclusive nos parlamentos. A realização desse desejo do eleitor, todavia, por enquanto não passa de devaneio de Micareta...
        A bancada do Boi desfilaria com arrobas de medidas modernizadoras: revogação da Lei Áurea, amor livre aos agrotóxicos e suspensão por prazo indeterminado das proibições cafonas ao desmatamento livre. Quem sabe se um brilhante carnavalesco não produziria um carro alegórico retratando a floresta amazônica como um imenso estacionamento? Tudo é possível nos quatro dias de Micareta.
       É claro que o momento político no Brasil não permite irreverências do gênero: hoje, alusões inoportunas implicam no risco de desembestar até em sopapos e outras agressões. E a própria Micareta segue um curso previamente medido e pesado, sem espaço para grandes inovações, encaixando-se num padrão que tende a se repetir até que uma salutar revolução criativa a reconfigure.

        Apesar da crise – e do repertório micaretesco mais pobre – a festa é a oportunidade de muitos feirenses se divertirem gastando pouco; e de outros tantos assegurarem o próprio sustento em época de vacas magras. Resta desejar que, em 2017, a folia ocorra sob um cenário mais alegre.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Parlamento não digere a democracia virtual

A tentativa do Congresso Nacional de cercear a liberdade de opinião através da Internet é ao mesmo tempo preocupante e alvissareira. Preocupante por motivos óbvios: trata-se de mais uma ingerência – ou tentativa – da classe política de cercear a liberdade de opinião que a Constituição de 1988 prevê e que, até recentemente, era exercida apenas pelos poucos “privilegiados” que tinham acesso aos meios de comunicação convencionais, como jornais impressos, emissoras de rádio e televisão. Por outro lado, é alvissareira por dois motivos: primeiro porque o acesso e o uso da Internet como meio de comunicação no Brasil vem se difundindo, alcançando dezenas de milhões de brasileiros que integram o universo de “incluídos digitais”. Segundo, porque a expansão já causa imensa preocupação na Câmara e no Senado, onde se tenta forjar amarras inúteis no longo prazo. Semana passada a ingerência e a incompreensão do que representa o fenômeno da Internet eram visíveis através das imagens da TV Senado:

Cultura e História no Mercado de Arte Popular

                                Um dos espaços mais relevantes da história da Feira de Santana é o chamado Mercado de Arte Popular , o MAP. Às vésperas de completar 100 anos – foi inaugurado formalmente em 27 de março de 1915 – o entreposto foi se tornando uma necessidade ainda no século XIX, mas só começou a sair do papel de fato em 1906, quando a Câmara Municipal aprovou o empréstimo de 100 contos de réis que deveria custear sua construção.   Atualmente, o MAP passa por mais uma reforma que, conforme previsão da prefeitura, deverá ser concluída nos próximos meses.                 Antes mesmo da proclamação da República, em 1889, já se discutia na Feira de Santana a necessidade de construção de um entreposto comercial que pudesse abrigar a afamada feira-livre que mobilizava comerciantes e consumidores da região. Isso na época em que não existia a figura do chefe do Executivo, quando as questões administrativas eram resolvidas e encaminhadas pela Câmara Municipal.           

Patrimônio Cultural de Feira de Santana I

A Sede da Prefeitura Municipal A história do prédio da Prefeitura Municipal de Feira de Santana começou há 129 anos, em 1880. Naquela oportunidade, a Câmara Municipal adquiriu o imóvel para sediar o Executivo, que não dispunha de instalações adequadas. Hoje talvez cause estranheza a iniciativa partir do Legislativo, mas é que naqueles anos os vereadores acumulavam o papel reservado aos atuais prefeitos. Em 1906 o município crescia e o prédio de então já não atendia às necessidades do Executivo. Foi, então, adquirido um outro imóvel utilizado como anexo da prefeitura. Passaram-se 14 anos e veio a iniciativa de se construir um prédio único e que abrigasse com comodidade a administração municipal. Após a autorização da construção da nova sede em 1920, o intendente Bernardino Bahia lançou a pedra fundamental em 1921. O engenheiro Acciolly Ferreira da Silva assumiu a responsabilidade técnica. No início do século XX Feira de Santana experimentou uma robusta expansão urbana. Além do prédio da