Quarta-feira,
04 de dezembro, em Salvador. Nuvens diáfanas, levemente encardidas, cobrem o
céu, apesar do sol luminoso e do calor. Um negro idoso, de cabelos inteiramente
brancos, sobe num ônibus. Entre cânticos, distribui um panfleto religioso.
Recusei-o, para não acumular papel inútil. Segue-se uma inevitável pregação no
ônibus lotado, aos berros, interrompida por citações mecânicas da Bíblia,
previamente decoradas. Não haveria nada de especial na peroração estéril, se
não fosse pelos versículos escolhidos e pela data em que se comemora, com
procissão e festa no mercado de São Miguel, na Baixa dos Sapateiros, o dia de
Santa Bárbara, ou Iansã, no sincretismo religioso.
Condenava
vigorosamente o culto às imagens, citando manjadas passagens bíblicas. Fazia
alusões a deuses e demônios que povoavam as escrituras sagradas e, pelo visto,
lhe incutiam mais ódio que temor. E afirmava, confusamente, que o homem esquece
Deus para cultuar outros homens.
Esgotado
o repertório pobre, partiu para ataques mais diretos: acusou o papa católico
Francisco de incentivar o culto a demônios representados em imagens. E chicoteou
os incréus, sobretudo os “doutores”. Finda a pregação irracional, sentou por
alguns instantes e se pôs a cantar, incomodando os passageiros ao redor.
Examinei-o
por alguns instantes: pobre, velho, com pouca cultura e – provavelmente –
muitas frustrações acumuladas ao longo da vida, tinha bem o perfil dos que são
fanatizados pelas seitas que surgem em cada esquina, todos os dias. Imagino que
doa parte de seus modestos rendimentos a algum pastor voraz. Tudo em nome de
Jesus.
Intolerância crescente
As
diatribes do infeliz no corredor do ônibus seriam suficientes para encrencá-lo
com a Justiça. Afinal, intolerância religiosa é crime. Mas, não: desceu sem
embaraços do veículo, certamente leve pela certeza de ter levado a Palavra de
Deus para incréus como eu, visto que recusei o panfleto. Aquela cena me deixou
vagamente inquieto e confirma impressões que ouço com muita frequência: “Estaremos
caminhando para o abismo de uma guerra religiosa?”.
Durante
séculos a Igreja Católica predominou como credo quase exclusivo no Brasil. Os
negros escravos que vieram da África trazendo consigo suas crenças sofreram
terrivelmente para preservar sua identidade religiosa. Apesar desse histórico
de intolerância, o Brasil nunca foi seriamente ameaçado por um conflito
religioso, como as sangrentas guerras que acontecem em outras partes do mundo.
Nos
últimos anos, porém, o cenário vem mudando. Seitas surgem todos os dias,
tocadas por pastores frenéticos no discurso e insaciáveis na fúria
arrecadadora. Movidos pela sede do enriquecimento rápido, insuflam seus fieis
contra outras agremiações evangélicas e, sobretudo, torpedeiam católicos e
adeptos das religiões de matriz africana.
Guerra?
Ninguém
sabe no que isso pode resultar. Como não existem lideranças unificadas e a
intolerância viceja entre essas próprias seitas, visto que brigam pelo mesmo
butim, talvez a coisa permaneça se manifestando em surtos eventuais entre os
mais transtornados, como ocorreu naquele ônibus na manhã de 04 de dezembro. Mas
que a intolerância vem crescendo, não restam dúvidas.
Conheço
pessoas que integram as mais variadas denominações religiosas. Quase todas elas
buscam a paz e não a guerra. Procuram a religião como forma de elevação
espiritual, não para, obsessivamente, mercadejar com um Deus imaginário uma
riqueza fugaz. A essas cabe a missão sagrada de cultivar a paz e não estimular
a intolerância e, quem sabe, conflitos mais sérios.
Lá
adiante, quando os brasileiros tiverem, de fato, acesso à escola e ao
desenvolvimento cultural, acredito que essas inclinações beligerantes tendem a
desaparecer. Como exaustivamente reiteramos, a educação é o antídoto mais
adequado para uma infinidade de males. No caso em questão, resta saber se
haverá tempo...
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