Não lembro
exatamente se foi na véspera ou na antevéspera de Natal. O que recordo bem é
que dezembro transcorreu sob um calor insano, apesar das imensas nuvens
encardidas, prenunciando uma chuva que caiu no fim da manhã e que encobria o
sol com frequência. Passava por uma das esquinas da avenida Sampaio e notei os
três homens conversando, dois deles debruçados numa varanda. O movimento de
veículos e pedestres já era menor, em função dos festejos natalinos. Mas ainda
assim muita gente entrava e saía das clínicas nas imediações.
Antes que
passasse por eles, o grupo se dispersou: dois permaneceram na varanda, um
seguiu adiante. Um dos interlocutores comentou sobre o que saíra: “Querendo
fumar pedra a essa hora. Tem mais é que se f... mesmo”. O ar de desprezo
reforçava o tom cruel da sentença.
O que seguira
devia ser adolescente: maltrapilho e encardido, tinha a idade incerta dos que
vivem nas ruas. As roupas largas e sujas dançavam no corpo magro, de pele parda.
Adiante parou, interpelou um transeunte baixo e forte. Este, com gestos lentos,
tirou a carteira do bolso e repassou uma nota de R$ 2 para o adolescente que
fez meia-volta e retornou com um sorriso nos lábios, feliz como quem conduz um
bilhete premiado de loteria.
Depois de
alguns minutos, refiz o mesmo roteiro. O adolescente e um dos interlocutores
sumiram: deduzi que tinham ido comprar crack nas imediações. O sujeito que
fizera o comentário permanecia na mesma varanda: esticara-se num colchão de espuma,
muito sujo, junto a uns trastes guardados numas sacolas plásticas.
Expansão
Esse tipo de
cena, durante muitos anos, chegou aos feirenses apenas através da televisão, em
reportagens que abordavam a disseminação do consumo de drogas – particularmente
o crack – no centro de São Paulo ou em alguma outra metrópole. Avassalador, o
tráfico alargou fronteiras e, a partir do final da década de 1990, alcançou as
cidades médias.
Na década
seguinte tornou-se epidemia: chegou às pequenas cidades e as “cracolândias” se
multiplicaram. Nas metrópoles, já nem faz sentido se referir a uma
“cracolândia”: as áreas de consumo se distribuem por região geográfica. Em
Salvador, por exemplo, toda a região central da cidade abriga viciados:
Piedade, Pelourinho, Baixa dos Sapateiros e adjacências, Sete Portas e até no
elegante Corredor da Vitória é possível observar usuários vociferando contra
inimigos imaginários.
Feira de
Santana não ficou imune ao processo: tímido no início, o consumo se alastrou
nos últimos anos e existem, pelo menos, dois indicadores que sinalizam para a
disseminação do crack no município: o elevado número de homicídios e o
surgimento de incontáveis moradores de rua na região central da cidade.
Cracolândia
Há décadas,
quando o Brasil nem sonhava com os programas de transferência de renda
atualmente existentes, retirantes vivia em barracos improvisados nas imediações
da Avenida Contorno. Tangidos pela seca, montavam acampamento na expectativa de
viajar para São Paulo, que seguia como eldorado para os nordestinos sem
oportunidades. No centro da cidade, a população de rua era composta por menores
abandonados ou por idosos. Jovens moradores de rua, sobretudo homens, eram
raros.
Hoje, o crack
subverteu essa ordem. Ali pela Getúlio Vargas, perto da Praça de Alimentação, é
possível ver jovens dependentes dormindo sob marquises. Grupos se aglomeram nas
praças da Matriz e na Kalilândia, perambulando à cata de esmolas, fazendo
pequenos serviços ou furtando para sustentar o vício.
A Feira de
Santana precisa estar alerta para esse problema sob pena de, lá adiante, não
repetir o triste espetáculo das “cracolândias” das grandes cidades, dispondo de
uma “cracolândia” própria onde nem a polícia entra. São Paulo, que faz uma
imensa e muito questionada operação para remover usuários da antiga Boca do
Lixo, é um exemplo vivo de como é difícil enfrentar a questão...
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