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O sumiço dos patriotas

 

Meados de 2018. O ônibus saiu de Salvador bem no começo da manhã. Linha regular, destinava-se às cidades da região sisaleira e, pelo caminho, catava quem se destinava à Feira de Santana, a Serrinha, a Conceição do Coité. Entusiasmado militante de Jair Bolsonaro, o “mito”, o cobrador estava exultante com o resultado das eleições presidenciais. Logo na saída da Rodoviária de Salvador – a manhã era ensolarada, luminosa – saudou alguém, à distância: “Bolsonaro! Bolsonaro!”, a voz alegre, satisfeita.

Depois saiu conferindo passagens e, adiante, um acólito do “mito” - que examinava notícias na tela de um celular -, desejoso de puxar conversa, foi logo mencionando informação da Folha de São Paulo, enfiou um papo de desvio de verba no diálogo recém-iniciado; mas o cobrador, rápido feito um raio, reagiu quando ouviu a menção às verbas de gabinete, nem esperou a conclusão da frase:

-Lei Renault, Lei Renault! Eles estão chateados porque vão perder a mamata da Lei Renault!

Pensei que trocar Rouanet por Renault era gracejo, mas não. Falava sério. Viagem afora, exaltava as virtudes do “mito”, mas, sobretudo, desancava as gestões petistas, deplorando a corrupção, a incompetência, o “comunismo”. Já aqui na Feira de Santana, interrompeu a diatribe para examinar um par de mulheres que transitava pela Avenida Transnordestina:

-Que filé!

O exame mais de perto, porém, o decepcionou: não correspondiam ao seu padrão de beleza, embora, ele próprio, não fosse nenhum dândi. Fez uma careta contrafeita e sentenciou, mordaz:

-Filé da Venezuela...

Aquele era o protótipo do acólito do “mito”. O elevado fervor moral, a disposição para o conflito, o entusiasmo de cruzados que refundariam o País – naqueles dias, qualquer contestação às virtudes do “mito” poderia degenerar até em agressão física – chamavam a atenção. Aquela fé, aquela dedicação, aquela confiança cega, tudo degeneraria em profunda decepção mais à frente. Foi o que pensei – equivocadamente – enquanto o ônibus rolava estrada afora.

A pandemia interrompeu o hábito das viagens e já não sei se o rapaz conserva a mesma fé inabalável no “mito”. Muitos por aí mantém-se fieis, reproduzindo mecanicamente os absurdos que Jair Bolsonaro despeja e que a claque, disciplinada, toca adiante, alimentando as milícias digitais com a ração diária de ódio que as move. Conforme se percebe, a coisa é feia: não se admitem nuances, pois o “mito” é portador de uma verdade universal; quem o contesta é, naturalmente, um apóstata, um incréu, um excomungado.

Ultimamente esses tipos andam sumidos, fogem dos debates, ignoram provocações. Os mais ostensivos exibem adesivos em carros, penduram bandeiras nas janelas de casa, vestem vistosas camisetas da Seleção Brasileira. Calculo que não falem mais mal do “Centrão” e não alimentem mais papo sobre corrupção, inflação, preços dos combustíveis e outras mazelas que servem à manipulação dos “comunistas” encastelados na imprensa.

Incapaz de solucionar os graves problemas que afligem os brasileiros – inflação, recessão, desemprego, fome, pobreza crescente e tantas outras questões – o “mito” limita-se a fustigar sua claque, confiante num golpe (em nome do quê?) que o mantenha no poder e o impeça de responder pelo desmantelamento do País ao longo do seu governo “incorruptível”.

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