Pular para o conteúdo principal

O lúbrico combatente do “comunismo de costumes”

 

Deu trabalho, mas o homem reapareceu no conjunto Feira 6. Enxugava litrinhos de R$2,50, beliscava mortadela – a mais barata - em cubos, examinava as estudantes da Uefs com o olho acurado, aceso, lúbrico. Não era de negar fogo, parecia insinuar, lançando olhares venenosos. Mas, na verdade, aproveitava a tarde vadia, plácida, de céu azul pontuado por nuvens encardidas, escorrendo mansa. Foi pouco antes do começo deste ciclo de chuvas.

À primeira vista, tomariam-no como um idoso pacato, estritamente dedicado ao ócio da aposentadoria. Mas, não: bastam algumas palavras para perceber, na personagem, o fervor patriótico, a flama cristã, o engajamento cidadão, o entusiasmo de cruzado contra o “comunismo”, contra a degeneração socialista.

- Esse negócio de inflação é coisa dos comunistas, estão manobrando, prejudicando o capitão!

Os dados mais recentes saíram do forno faz pouco tempo: inflação de 1,06% em abril – maior alta desde 1996 – e, no ano, já roçando 4,29%, aproximando-se do teto da meta do Banco Central para o ano todo, de 5%. No acumulado de 12 meses, chega-se a impressionantes 12,13%. Mas o homem permanece inflexível, farejando culpados, inocentando Jair Bolsonaro, o “mito”.

-Tem guerra, teve pandemia, teve o 'fique em casa'. O resultado está aí! - Recitou, acariciando a própria perna. Parecia autocongratular-se pelo raciocínio. Sorriu, o sorriso denunciando a vaidade, a refinada perspicácia. Para ele, aquele argumento emparedava os comunistas, punha-os na defensiva.

-Mas comunista aumenta preço como?

Aí o homem enfezou-se, fez um gesto largo, indignado: não vale a pena ficar discutindo com radicais, com essa turma da Venezuela, de Cuba. Pressionado, confidenciou, falando baixo, lançando olhares de esguelha: o “mito” não é culpado de nada, os comunistas conspiram, há adversários até entre banqueiros, gente do Capital, que também é comunista. “Comunista rico?”, indagaram, perplexos. “Comunismo de costumes”, esclareceu.

-Mas e a feira? Você está fazendo feira como? - Questionou um indiscreto.

Muito sério, o homem disse que é aposentado, mas que, mesmo assim, se precisar, a filha ajuda. Acrescentou, o ar pedante: “Ela é doutora em direito!”. Instantes depois, um indiscreto cochichou: a filha graduara-se em direito por uma faculdade particular, no Brasil qualquer bacharel sai logo requisitando o título de “doutor”, a distinção que a condição, supostamente, confere.

-O comunismo de costumes é o quê?- Quis saber outro indiscreto.

A careta teatral indicava que aquele papo abespinhava-o. Depois fez um gesto enfático, desdenhando a conversa, que não valia a pena. Coalhado de comunistas, – outros estão em formação ali mesmo, a incubação é incessante – o Feira 6 carecia de uma depuração ideológica, a devassidão dos costumes fincara-se ali. Falava mas, sem tanta discrição, espichava o olho para toda estudante que despontava nas cercanias. A plateia acompanhava o movimento, o riso no canto do lábio.

Espichou um pouco mais a conversa sobre as práticas comunistas – até no futebol se metiam! - e, por fim, entornou o gole derradeiro da cerveja, catou ávido com o palito os fiapos de mortadela no prato, emendou pedindo a conta. Sacou uma nota amarrotada de vinte reais, estendeu-a com um gesto solene, lamentou a idade, justo com tanta mulher bonita circulando por aí, ah! Se fosse no tempo do regime militar, era jovem e não faltava-lhe ânimo...

Saiu, mergulhando num caminho escuro, mais à frente viu um grupo de moças conversando aos risos defronte a uma casa iluminada, aproveitou para repuxar os testículos com a mão sobre a bermuda branca, ah se aquelas meninas cedessem à sua já flácida experiência...

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Cultura e História no Mercado de Arte Popular

                                Um dos espaços mais relevantes da história da Feira de Santana é o chamado Mercado de Arte Popular , o MAP. Às vésperas de completar 100 anos – foi inaugurado formalmente em 27 de março de 1915 – o entreposto foi se tornando uma necessidade ainda no século XIX, mas só começou a sair do papel de fato em 1906, quando a Câmara Municipal aprovou o empréstimo de 100 contos de réis que deveria custear sua construção.   Atualmente, o MAP passa por mais uma reforma que, conforme previsão da prefeitura, deverá ser concluída nos próximos meses.                 Antes mesmo da proclamação da República, em 1889, já se discutia na Feira de Santana a necessidade de construção de um entreposto comercial que pudesse abrigar a afamada fei...

Patrimônio Cultural de Feira de Santana I

A Sede da Prefeitura Municipal A história do prédio da Prefeitura Municipal de Feira de Santana começou há 129 anos, em 1880. Naquela oportunidade, a Câmara Municipal adquiriu o imóvel para sediar o Executivo, que não dispunha de instalações adequadas. Hoje talvez cause estranheza a iniciativa partir do Legislativo, mas é que naqueles anos os vereadores acumulavam o papel reservado aos atuais prefeitos. Em 1906 o município crescia e o prédio de então já não atendia às necessidades do Executivo. Foi, então, adquirido um outro imóvel utilizado como anexo da prefeitura. Passaram-se 14 anos e veio a iniciativa de se construir um prédio único e que abrigasse com comodidade a administração municipal. Após a autorização da construção da nova sede em 1920, o intendente Bernardino Bahia lançou a pedra fundamental em 1921. O engenheiro Acciolly Ferreira da Silva assumiu a responsabilidade técnica. No início do século XX Feira de Santana experimentou uma robusta expansão urbana. Além do prédio da...

O futuro das feiras-livres

Os rumos das atividades comerciais são ditados pelos hábitos dos consumidores. A constatação, que é óbvia, se aplica até mesmo aos gêneros de primeira necessidade, como os alimentos. As mudanças no comportamento dos indivíduos favorecem o surgimento de novas atividades comerciais, assim como põem em xeque antigas estratégias de comercialização. A maioria dessas mudanças, porém, ocorre de forma lenta, diluindo a percepção sobre a profundidade e a extensão. Atualmente, por exemplo, vivemos a prolongada transição que tirou as feiras-livres do centro das atividades comerciais. A origem das feiras-livres como estratégia de comercialização surgiu na Idade Média, quando as cidades começavam a florescer. Algumas das maiores cidades européias modernas são frutos das feiras que se organizavam com o propósito de permitir que produtores de distintas localidades comercializassem seus produtos. As distâncias, as dificuldades de locomoção e a intermitência das safras exigiam uma solução que as feiras...