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O Terror de 16 de Abril



               
               
                Ao invés de fiscalizar o Executivo e exercer suas funções mais próximos da sociedade, muitos vereadores dedicam-se ao exercício quase inútil da criação de datas alusivas a motivos diversos. E aí tome dia municipal disso, dia municipal daquilo. Quase sempre, depois de aprovados com exaltados elogios, esses projetos vão acumular poeira nos escaninhos do Legislativo. No máximo, lá adiante, um eventual criador de uma data qualquer lustra seu currículo com uma referência ao projeto, até pela ausência de coisa melhor para mostrar.
                Pois bem: o 16 de Abril na Feira de Santana deveria passar a figurar nesse panteão de datas célebres. E por motivos fúnebres: foi nele, semana passada, que mais de 40 pessoas foram assassinadas no município, durante a paralisação da Polícia Militar. Mas, como meramente celebrar não basta, é necessário atribuir um sentido à data. Talvez como um marco na luta contra a impunidade.
                Países costumam imortalizar as datas de batalhas célebres contra inimigos externos ou em guerras pela independência. Embora disfarçada e difusa, a Feira de Santana enfrenta um guerra acirrada que se intensificou no início dos anos 2000. Afinal, milhares de pessoas foram assassinadas desde então. Imagino que, hoje, poucos assassinos estejam respondendo pelos seus crimes. E, muito provavelmente, pouquíssimos foram condenados e estão encarcerados.
                O 16 de Abril, portanto, poderia ser adotado como data de combate à violência e à impunidade. Mas não apenas como uma data simbólica, como as centenas que já existem: junto com a data, o município deveria criar mecanismos que, de fato, contribuam para diagnosticar, mapear e conter essa sanha assassina que faz com que os cadáveres sejam contados às dezenas todos os meses.
                 
                 Esforço

                Qualquer observador deduz que, na Feira de Santana, a violência há anos está fora de controle. E que as instituições policiais, isoladamente, não conseguirão frear essa espiral de assassinatos. Daí a necessidade de se investir na construção de uma nova institucionalidade, que atue de forma mais independente e que envolva a sociedade nas políticas públicas de Segurança. A criação de um Observatório da Violência, por exemplo, seria muito útil.
Paralelamente, é necessário descontruir falsas verdades que hoje dominam corações e mentes. Comece-se pela contestação de um discurso-padrão. Quando alguém é assassinado, a justificativa é sempre a mesma: tinha envolvimento com o crime, normalmente com o tráfico de drogas. Essa alegação costuma despertar uma condescendência quase intuitiva da população, incessantemente bombardeada por essa retórica nos programas sensacionalistas da televisão.
                O problema é que esse tipo de concordância tácita não produz efeitos que se esgotam em si mesmos: quem mata, é premiado com a impunidade, e vai empreender novos assassinatos mais adiante. As futuras vítimas poderão ser eventuais criminosos ou não: vai depender do humor de quem mata. E quem mata costuma se articular em rede, constituindo milícias que amedrontam a população mais pobre – e honesta – que vive na periferia, palco de muitos crimes. Foi essa impunidade que, aos poucos, alavancou as estatísticas criminais ao longo dos anos.

                Direitos
                
              Alguns, mais selvagens, advogam que criminosos não devem ter os mesmos direitos dos cidadãos honestos. As execuções, portanto, são perfeitamente justificáveis e até incentivadas. Caso fossem mais inteligentes, esses analistas perceberiam que as linhas divisórias entre “ladrão” e “cidadão honesto” se diluem à frente dos canos das armas do crime organizado, das milícias ou do mero ladrão cuja morte se deseja com tanta sofreguidão. Nada seria mais desalentador para os entusiastas da barbárie, caso conseguissem raciocinar.
                O terror do 16 de Abril foi amparado por esse discurso: segundo alguns, parte das vítimas tinha antecedentes criminais. Estavam, portanto, expostas a esses tribunais informais tão aplaudidos pelos mais hipócritas. A  suposta greve veio apenas antecipar o inevitável. Os demais, que foram tragados pelo mesmo mar de sangue,  entram no passivo da cultura da violência, que incentiva a impunidade e os ritos sumários. Às famílias, resta o desalento.
                O mais estarrecedor é que não existem perspectivas no curto prazo: os assassinatos vão seguir em profusão, caso as políticas para o setor não sejam modificadas. Resta apostar numa improvável variável exógena, de longo prazo: que as desigualdades sociais se reduzam, pois é o que pode, em parte, estancar a oferta de mão-de-obra barata para o crime e os nomes anônimos que vão rechear as estatísticas da violência no futuro.

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