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Lembranças de Havana (II)

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Quando o avião toca o solo é possível observar o asfalto da pista reluzente. Choveu há poucos instantes e a janela do avião se embaça, acumula gotículas trêmulas nos ângulos arredondados. De cima é possível contar duas ou três aeronaves que desembarcam passageiros ou manobram no pátio. Embora seja madrugada, o movimento está longe de se assemelhar ao frenesi aeronáutico das capitais capitalistas. Enquanto a aeronave manobra, nota-se que a orgia de luzes é mais pudica no aeroporto José Martí, pois certamente Havana está sujeita a racionamento.
            Uma imprevista multidão acotovelava-se nas esteiras aguardando malas. A aeronave no pátio e as etiquetas na bagagem indicavam ruidosos espanhois em viagem de férias. Mais tarde soube-se que misturaram as malas dos passageiros de dois voos, causando confusão.
            “Que tipo de constrangimento aguarda um visitante estrangeiro num país comunista? Haverá inspeção até nos sapatos?”. Não. Entrega-se uma das tarjetas reclamada no momento do embarque no Panamá, apresenta-se o passaporte num guichê, olha-se para a lente de uma máquina e, por fim, ouve-se amáveis boas-vindas de uma funcionária solícita. Mergulha-se, então, na frenética cortina de ferro caribenha que a imprensa internacional pinta com cores terríveis.
            Desembarcar durante a madrugada num país estrangeiro, sem hotel definido, não deixa de ser temerário. Depois de alguns entendimentos com agentes governamentais credenciados, define-se o destino. Um aposento numa residência particular, por 30 dólares, é delicadamente recusado. Melhor hospedar-se num hotel perto de la Habana Vieja, como dizem os cubanos, a cinqüenta metros do Malecón, a interminável avenida litorânea.
            Gorda e de seios fartos, a funcionária veste-se com displicência tropical e não abandona o cigarro nem mesmo quando recorre ao antigo aparelho telefônico para consultar hoteis. As tragadas sôfregas resultam em espirais azuladas de fumaça que se desfazem na sala minúscula. Sem dúvida, o cerco aos fumantes ao redor do mundo ainda não chegou em Cuba.
            Na saída do aeroporto o primeiro contato com a inesgotável frota de automóveis antigos que povoa as ruas da capital. Há, no entanto, surpresas: o táxi amarelo pertencente ao governo é novíssimo e da Fiat italiana. O preço da corrida corresponde a dez pesos convertibles ou cerca de 11 dólares norte-americanos.

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