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Catarse em mesa de bar

 

Tempos atrás, numa dessas despretensiosas cervejadas de uma ensolarada tarde de sábado, um amigo à mesa respirou fundo e cultivou um angustiante silêncio por alguns instantes. Bêbado? Não consumira tanto, era resistente ao álcool. Mas o olhar perdido, lançado sobre a calçada encardida, inquietava. Até ali o papo fluíra, banal. Não se incursionara por nenhuma delicada questão familiar e não se bebera o suficiente para enveredar por quaisquer especulações existenciais. Eu aguardava, entretido com a barulhenta celebração do sábado nas mesas próximas.

– Dia desses, mexendo nuns papeis, encontrei uma fotografia. Coisa antiga, dos tempos de movimento estudantil... eu lá, junto com a galera...

E aí abriu muito os olhos, mergulhando naquelas antigas recordações. Depois, descreveu a fotografia: oito ou dez estudantes, sorrindo, abraçados, naquelas aglomerações comuns às micaretas. Coisa antiga: a micareta ainda era na Getúlio Vargas e o registro ocorrera defronte a um dos barracões universitários da Uefs. Todo mundo mais jovem, mais magro, mais cabeludo.

– O pior de tudo foi a sensação de encontrar comigo mesmo...

A fotografia acionou o gatilho da saudade. Pela descrição vívida, as músicas, as luzes, as vozes, os gritos, as danças – até o sabor da cerveja – tudo voltou num turbilhão, borbulhando. O silêncio da noite e o inesperado do achado impulsionaram as sensações, revelou. Mas o pior de tudo nem foi isso: foi o sentimento de se encontrar, inesperadamente, consigo mesmo.

– Eu lá e eu aqui. Mas dois estranhos. O do passado, aprisionado na fotografia, mas muito vivo na minha memória. E eu mesmo, me reencontrando...

Que dizer? Aguardei. Novo silêncio se estendeu por alguns instantes. Na tevê do bar, um jogo qualquer de uma competição europeia. Acabrunhado, confessou que o encontro consigo mesmo fora constrangedor. Na meia-idade, mais gordo, com algumas rugas e jeito de burguês próspero, fustigava o rapaz sonhador, carbonário nas assembleias estudantis, farrista, mulherengo. E este, implacável, fustigava-o de volta.

As altas ambições do rapaz envergonhavam-no. Não disse quais eram, nem eu perguntei.  Enquanto reforçava a cerveja no copo, cogitei. Talvez o desenvolvimento de uma grande teoria, a realização de uma obra marcante, uma fulgurante trajetória acadêmica. Quem sabe dinheiro, poder, mulheres, viagens, um patrimônio invejável. Ou um Brasil mais justo, menos desigual. Leque amplo, mas quase todas as ilusões juvenis encaixam-se nele.

Curioso foi ele imaginar que o rapaz da foto também se envergonhava. Quem era ele desde aquela fotografia? Um sujeito com uma trajetória medíocre. Talvez pessoalmente ele não fosse medíocre, mas a trajetória era, ponderava. Formara-se, ingressara no serviço público, casara, tivera um par de filhos, financiara casa e carro. Uma vida comum. As grandes ambições ficaram pelo caminho e isto parecia que o martirizava. Pelo menos naquela tarde em que os tons do crepúsculo já se anunciavam. Requisitou mais uma cerveja com um gesto enfático.

– Acho saudáveis as grandes ambições da juventude. Mas depois a gente se ajusta...

Arrisquei, sem muita convicção. O papo ameaçava enveredar pela busca do sentido maior da vida. A tarde caía e, nas mesas próximas, havia movimentação. Um grupo barulhento ajeitava-se para acompanhar o jogo do Flamengo. Os olhos do colega cintilaram, era flamenguista. Aos poucos as tristezas do reencontro consigo mesmo foram se dissipando. O jogo tenso, equilibrado, prendia sua atenção.

O colega seguiu sua trajetória e não o vi mais desde o começo da pandemia. Mas a quantidade de cerveja não diluiu as lembranças daquela conversa. E, às vezes, penso em como pode ser dilacerante uma fotografia perdida no meio de papeis antigos...

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