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Lembranças de Havana (IX)


           

            Há muitos anos, num desses debates de mesa de botequim, quando ainda militava no movimento estudantil, formulei uma ideia que considerei, de imediato, brilhante e original: a devoção ao socialismo, entre muitos, não se diferencia enormemente da devoção religiosa. Muda apenas a natureza da veneração: abandona-se o abstrato e se recai sobre o real; saem de cena os anjos e os santos e entram os sisudos profetas do socialismo: Lênin para todos, Stálin para alguns e – pairando como vértice principal da Santíssima Trindade profana – o velho Marx.
            É óbvio que a ideia não foi bem recebida: houve rejeição sob protestos veementes, gestos encolerizados, dúvidas sobre minhas convicções socialistas. É óbvio, também, que a formulação não tinha nada de original: estava atrasada em algumas décadas, para meu pesar, conforme descobri depois. Essa imagem, no entanto, nunca me saiu da cabeça.
              Reencontrei-a quando contornei o Museu da Revolução, em Havana, numa tarde ensolarada. O imóvel possui uma arquitetura que meus escassos conhecimentos não permitem descrever, mas deduzo que seja algo novo e, relativamente, arrojado.
O pitoresco, porém, não estava no imóvel, mas nos adereços que o ornavam: através dos vidros, via-se um tanque; também se via uma embarcação que, pelo que fiquei sabendo, era o famoso Granma no qual os revolucionários conseguiram chegar à ilha depois de uma viagem cheia de imprevistos. Embora não me recorde bem, creio que havia também destroços de um avião legalista abatido pelos revolucionários.
            Essas relíquias são objeto de uma desconcertante veneração por parte de ardorosos revolucionários que visitam Havana. Lembram as piedosas figuras que viajam centenas ou milhares de quilômetros para venerar suas imagens adoradas nos países cristãos. No interior do museu há uma vasta exposição de objetos pessoais pertencentes aos revolucionários.
            O desfilar silencioso de ateus extasiados com objetos expostos mostra que os seres humanos ainda não conseguiram romper a lógica do paraíso cristão prometido nos primórdios dos tempos: os socialistas apenas deslocaram o idílio do além-túmulo para uma abstração idealizada e culturalmente forjada depois que as mazelas do capitalismo forem extirpadas.
            Como a humanidade não consegue ir além da imitação de si mesma, o capitalismo também tem sua versão idílica: o livre mercado em pleno funcionamento. Esse, por sua vez, virá quando os gentios estatistas foram convertidos.
            A criatividade escassa também só permite uma metáfora com a veneração aos artefatos revolucionários: Havana é uma espécie de Meca dos socialistas; uma das últimas, a propósito, porque as demais caíram em profusão em meados do século XX...
           

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